VERBOS DEFETIVOS
Não é fácil perceber por que
razão a tradição gramatical impôs a ideia, mas ela é viçosa na língua: há
categorias gramaticais defeituosas, ou defetivas. Pelo menos assim é no que
respeita a um certo número de verbos que, ora por razões de eufonia, ora por
coexistirem com verbos cujas pessoas são análogas, veem anuladas algumas
formas. O conceito de “defeito” não deixa de ser curioso porque, no fim das
contas, corrigido eventualmente o verbo, deveria ele apresentar-se de cara
absolutamente imaculada. Um dos critérios mais usados para considerar um verbo
como sendo defetivo tem a ver com a analogia de formas. É na base deste
critério que verbos como pular e polir, por exemplo, entram em choque. No
presente do indicativo, primeira pessoa, a forma é a mesma: eu pulo. Realmente,
se eu digo Eu pulo a mesa, assim, sem
mais, sem contexto, a minha mãe ficará de cabelos em pé, pois temerá pelas
minhas sagradas pernas. Mas se eu lhe disser Oh mãe, eu pulo-a depressa com aquela cera, duvido que a velhota não
alcance o sentido da frase. Esfregará com certeza as mãos, pois, para além de
ficar com a mesa bem brilhante, ter-me-á dado um bom trabalho. Não vejo,
portanto, onde se agarram os gramáticos para considerarem o verbo polir como um verbo defeituoso. Aliás,
eu acho que os gramáticos evitam o álcool, se não na mesa, pelo menos nos
livrecos. Só assim se compreende a fobia ao brande.
Porque esta bebida já tem alforria no universo lexical do português, evita-se
alguma eventual confusão com O Zorro
brande vigorosamente o seu chicote. Mas que confusão, perguntar-se-á? Se eu
brando um chicote, estarei de garrafa na mão? E alguém achará que sou brando
com as mulheres? Não, brandir não me
parece também um verbo defeituoso. No que respeita a eufonias, ou melhor, a
cacofonias, a coisa merece atenção. Por exemplo, com o verbo demolir, vocês já notaram se eu disser É necessário que eu demula…? Ainda vão
pensar que eu ando de mula lá pelo adro da igreja… Ou com o verbo carpir, se eu disser Antes que eu carpa… Eu, peixe? E se
pegar em verbos que ficam ali no limite das cogitações, hem? Por exemplo,
embora em Portugal seja fenómeno recorrente, conhecem alguma empresa que fale?
Eu, que até falo bem, não falo porque nem sequer tenho dinheiro para falir. À empresa acontece bem pior, que
nem língua tem. Empresa que não se preze não fale, quando muito faliu, ou vai à
falência. E aqui sim, compreende-se o defeito. Falir é realmente um verbo defeituoso, olá se é! Por último, porque
todos devem remir as suas dívidas,
empresas inclusas, cumpre-me pagar as minhas. O que faço, remo a minha dívida? Mas
não se rema com remos? Então, rimo essa dolorosa dívida? Oh, mas não se rima o
verso? Ou será que a remio sem miar? Como se vê, este verbo é tão, tão
defeituoso, que nem se deixa conjugar em diversas pessoas. E pronto, agora compreendo porque
continua a mácula, e porque os gramáticos nos batem na cabeça como a palavra “defetivo”.
A mim bateram-me três vezes, mas aprendi e redimo os meus pecados todos os
dias.
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