terça-feira, maio 19

Diferem em muito o amor e o gozo daquilo que se possui.

SOFIA – Bem vejo que o amor e o desejo são uma mesma coisa na sua substância, e assim mesmo os seus contrários, mas o amor da coisa não possuída e o da possuída parecem (como dizem eles) bem diferentes.

FÍLON – Parecem, mas não são diversos. Na verdade o amor da coisa possuída não é o deleite, nem é o gozo da fruição do possuído, como estes dizem. O possuinte da coisa amada deleita-se e goza, mas o gozar e deleitar-se não é amor, porque não pode o amor, que é movimento ou princípio de movimento, ser uma mesma coisa com o gozo ou deleite, que são quietude, fim e término do movimento. Asseguro mesmo que têm progressos tão contrários, que o amor vai do amante para a coisa amada, mas o gozo deriva da coisa amada para o amante. Vejamos mormente que o gozo é do que se possui e o amor é sempre do que falta, e é sempre uma mesma coisa com o desejo.

SOFIA – Mas a coisa possuída é amada, e aquela já não falta.

FÍLON – Não falta a posse presente, mas falta a perseverança contínua dela no porvir, a qual deseja e ama aquele que possui de presente. E a posse presente é a que deleita; mas a vindoura é a que se deseja e se ama. De maneira que, tanto o amor da coisa possuída, como o da não possuída, é uma mesma coisa com o desejo. Contudo, é uma coisa diferente do deleite, assim como a dor e a tristeza é uma coisa diferente do ódio e do aborrecimento, porque a dor existe por causa da posse presente do mal presente, e o ódio é por não ter coisa no porvir.


Aviso: há alguns anos, o New Criticism relevava algumas importantes falácias, entre as quais se evidenciava a falácia biografista. Consiste tal falácia em relacionar, de modo simplista, o texto ou a obra com a vida do autor. Neste exacto momento, juro solenemente que não me chamo Leão Hebreu, que o diálogo entre Fílon e Sofia não saiu da minha cabecinha e que eu não sou nem o amante nem a coisa amada referidos no texto.

domingo, maio 17

A FLOR

Ouço de Zamphir a flauta profunda e lenta. Pelo meio, sons de chuva esbarram cinzentos na janela. O dia boceja frio, com apetites de cama novamente. E o pão com manteiga dos que dependem dele às onze da manhã? Levanto-me e saio. Atravesso o jardim com passo duplo, volteando as poças imensas de água. A rosca quente da manhã é exercício inelutável, induz-me sempre a ir em frente, quer pingue, quer faça sol. Volto pelo mesmo caminho, piso as mesmíssimas pegadas e de repente vejo: a flor. Treme de frio derreada sob as gotas intensas, mas projecta o seu olhar de encontro a mim. Uma flor num dia de chuva, orgulhosa e viva, sorrindo cândida para o mundo. Acho que já ganhei simbolicamente o dia: ver uma flor sorrindo para nós num dia frio e cinzento é extraordinário augúrio. Assim seja na minha vida, na vida de todos os leitores, agora e para sempre. Amen.

quarta-feira, maio 13

O AMOR E A VIDA


Eu sei que às vezes a vida é nossa inimiga. Nascemos com ela e por ela, crescemos e sonhamos sonhos impossíveis, e de repente vemos o sol no zénite da nossa adoração. São os olhos e a face, o sorriso dulcíssimo que nos inebria, o abraço e os corpos em irreprimível fusão. Dizemos: amo-te, amo a vida, fundimo-nos com toda a natureza e pensamos que a vida somos nós em contínua floração. A noite, porém, também é dia. E na noite trememos os segredos, sofremos as angústias, choramos as lágrimas que a luz do sol reprime. Se eu amo, porque a minha amada se nega? Se eu sorrio às flores, porque se esconde o sol e cai a neve, esfriando os mais quentes sentimentos? Quiséramos amar e ser amados assim, incondicionalmente, de coração aberto e sem truques, porque o amor não é trunfo que se jogue mas dor que nos entranha e faz sofrer. Olhamos às vezes o vazio do amor, o lugar dele agora não preenchido, recordamo-lo com a mão no peito e cerramos os olhos. Amar é sublime, ou na ausência, ou na noite, ou nas lágrimas impotentes e caladas.

domingo, maio 10

DIÁLOGOS DE AMOR

Há muitos anos, descobri uma obra maravilhosa de um português desconhecido, nascido em Lisboa em 1465 ( ou em 1490, segundo Reis Brasil), cujo nome atravessou todas as fronteiras. Trata-se dos Diálogos de Amor, de Leão Hebreu, um dos maiores pensadores que a Humanidade criou e que em Portugal, infelizmente, quase ninguém conhece. Comprei a obra, em dois volumes, e devorei-a em poucos dias, tão saboroso era o sumo de tão magnificente escrito. Apaixonei-me por Fílon e Sofia, e percorri com eles a profundidade espiritual do amor e do desejo.

Lembro-me de ter registado algumas afirmações que me obrigaram a pensar o que repito agora. A primeira é relativa à poesia, e releva que os poetas encerram muitos sentidos nas suas ficções. Lembro-me de ter lido, na altura, “o poeta é um fingidor”, de Fernando Pessoa, e de ter analisado este poema em cinquenta mil direcções. Foi uma fase muito interessante de descoberta teológica que recordo com alegria. A segunda diz respeito às figuras geométricas. Ler que "a mais formosa das figuras é a circular porque está toda em si e tem partes" conduziu-me à fascinação pelo sol e pela lua, pelas estrelas e pelos seios de mulher, tudo fogo, luz e claridade que me inebriaram por uns muito largos e profícuos tempos. A terceira, que me deixou mais pensativo do que o pensativo cigarro do grande Eça, foi a declaração de que “o que se ama, possui-se; e o que se deseja, falta-nos”.

Demorei alguns rios da minha vida a perceber esta profunda filosofia. Hoje, mais calmo e sorrindo das minhas eloquentes cãs, sei que me falta tudo o que desejo. Mas sei também que possuo em mim, que me é já absolutamente intrínseco, todos os que amo ou alguma vez amei, e que essa possessão é vida e sangue em mim, e que viverei com esse amor agora e para todo o sempre.

Se puderem, leiam Leão Hebreu.

quarta-feira, maio 6

ESCARAPÃO

A beleza das línguas consiste, muitas vezes, na descoberta de palavras e de significados que arejam certas situações ou contextos. Pessoalmente, ouço sempre com atenção o transmontano, o alentejano ou o algarvio. Já para não falar do brasileiro sertanejo ou do moçambicano nampulense. Aprendo sempre, porque as palavras são significante e significado, mas têm os seus referentes que, quase sempre, nos embarcam em viagens culturais.

Há minutos ouvi a palavra escarapão. Confesso que desconhecia tal palavra, nunca a ouvi cá pelo norte. Percebi que, usada em contexto irónico, significa pessoa arisca, não muito simpática. Fiquei a saber que é nome de uma cobra inofensiva, de barriga amarela e dorso escuro, e que é um provincianismo alentejano. Curiosamente, nem o Dicionário da Academia nem o Houaiss a têm em verbete. Consta, sim, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado.

Porque o povo faz a língua, registo a brincadeira de uma avó, pelos vistos atenta às características da neta arisca. Dizia ela, na sua linguagem arrastada e lenta: “Tu és uma escarapoa”… Terá dito bem? Haverá feminino de escarapão? Se a avó o disse…

sexta-feira, maio 1

A VEZ DOS PORCOS

Eu já sabia: isto das doenças é cíclico. Se bem me lembro, a doença mais antiga teve origem no estupidosaurus, um réptil da família dos sáurios gigantes que habitavam nas montanhas do Gerês. Naquele tempo, até as lagartixas espirravam e as caracoletas choravam. Eu sei isto porque investiguei in loco as manchas negras de alguns rochedos da zona da Pedra Bela. Depois, ao longo do tempo, as gripes, principalmente essas, voaram de espécie em espécie, até chatearem os humanos. Como não podia deixar de ser, pelas Africas foram os macacos os culpados. Depois, consta que foram os texugos, fedorentos até à testa. Ultimamente, por causa de umas farmacêuticas que necessitam de encher o bandulho, foram, respectivamente, os crocodilos da Alsácia, os bisontes catalães, os dromedários da Islândia e, pasme-se, as vacas inglesas e as aves da Gronelândia. É verdade, que é feito das vacas de olhos retorcidos? Parece que, cheio o bandulho de quem engorda à custa do Zé, as vacas se portam melhor. Ah, e as avezinhas, essas coitadinhas, que levavam gripes no bico a todos os cantos do mundo? Ouvi dizer que o Fernão Capelo resolveu o assunto passando a voz por todos os continentes. Cheia a pança à custa do pilim do Zé, bye bye gripe aviática. Mas eu sempre disse à minha Joaquina que chegaria a vez dos porcos, que era impossível um animal tão porco não nos cuspir a gripe da praxe. E “prontos”, cá está ela. Valha-nos o Tamiflu, da Roche do costume. Aposto que a próxima gripe é a dos papagaios! Pelo sim, pelo não, já proibimos esta colorida e tagarelática ave cá no nosso condomínio...