sexta-feira, abril 23

O CÃO, A AVE E NÓS

Estava um dia de cinza e a chuva espreitava das nuvens. Cheirava a terra molhada, aquele cheiro que nos transporta para os campos ressequidos do passado. Quando estacionei o carro, bem junto ao muro da escola, levava na ideia o café quente que sempre tomo às sete da tarde. Era um café, e não um cão. Mas foi ele que se me atravessou nos olhos quando abri a porta, e me assustou ligeiramente. Bolas! O raio do cão ia-me atirando um chilique. Mirando bem, no entanto, e cogitando: porque estará o não culpado animal fixo no lajedo? Aproximei-me ligeiramente a medo e confirmei: cheirava um melro, um melrito pequeno e depenado, que piava de bico bem aberto pensando ser a mãe. Caíra certamente do ninho e o cão preparava-se para não perdoar. Quadro assim merecia adequada fotografia, mas faltava-me a máquina. Fiz menção de enxotar o canídeo, mas ele resmungou. Ameacei-o com um pontapé e ele afastou-se ligeiramente. Aproveitei então para acariciar o pássaro, que abria o bico em piadelas de fome. O cão aproximava-se, mas eu afastava-o. De repente, vejo cair sobre mim uma sombra negra, ameaçadora e gritante, em jeito de ataque suicida. Mas que raio…? Desviei-me a tempo da furiosa bicada. Porque de bicada se trataria, não tivesse eu movido a cabeça para a minha esquerda bem surpresa. Porque o melro, ou a melra, tinha-me visto com o seu filhote ao colo e em plena carícia. Nunca tal me tinha acontecido: sujeito a rosnos e a bicadas, tudo por causa de um ser angélico completamente depenado. Atirei-o para dentro do jardim, para um tufo de relva bem amanhada e verde. E fiquei à espera, um pouco mais longe, para não interferir no trabalho parental. E vi dois melros, o pai e a mãe com certeza, chilreando forte em torno do seu filho. E comovi-me. Porque nunca pensei que as aves cuidassem assim dos seus filhos, se preocupassem com eles, os defendessem com ataques aos agentes invasores. E comparei esta acção com a acção humana, com alguns pais que abandonam os filhos, que não cuidam do seu crescimento nem da sua educação. Serão as aves mais humanas do que nós?

quarta-feira, abril 21

TRADUTTORE TRADITORE

Sempre que posso, leio originais. Desde que fiz a experiência com uns franceses do século XIX (Flaubert, Zola…), fiquei vacinado. Os italianos têm razão, o traduttore tende a ser um traditore, e, no que respeita aos recursos estilísticos característicos de cada autor, é um traidor completo. Não acreditam? Comparem o original de Poe com as traduções de Assis e de Pessoa e digam qualquer coisinha:


EDGAR ALLAN POE - (1809-1849) - THE RAVEN ( O Corvo)

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As some one gently rapping at my chamber door.
‘ ’Tis some visitor,’ I muttered, ‘tapping at my chamber door—
Only this, and nothing more.’

Machado de Assis

Em certo dia, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais".

Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»

quinta-feira, abril 1

MUSEU D. DIOGO DE SOUSA:
OFICINA MONETÁRIA?


Leio no “Diário do Minho” que o Museu D. Diogo de Sousa vai produzir e comercializar réplicas de moedas romanas achadas em Bracara Augusta. Não sei se o objectivo principal é a divulgação ou a comercialização, mas tenho uma opinião sobre a decisão do museu. Na minha qualidade de numismata, coleccionador e estudioso da moeda, verdadeiro interesse têm as moedas originais, com as suas pátinas características, com as marcas de terra ou de ferrugem. Tenho horror às falsificações, às viciações e, como não podia deixar de ser, às cópias ou às réplicas. Nos sítios de leilões, nas feiras de numismática, até em grandes feiras internacionais, a existência de tais artefactos introduziu no coleccionismo algo que não existia até aqui: o medo de comprar moeda não verdadeira. Hoje, para se ser um verdadeiro numismata de moeda antiga, exige-se um grande conhecimento histórico, para além de conhecimentos na área monetária e, principalmente, da metrológica, sob pena de se coleccionar um objecto falso, que de moeda nada terá, evidentemente. Fico, portanto, surpreendido com a decisão do Museu D. Diogo de Sousa. Em primeiro lugar por se transformar numa “oficina monetária”; depois, por alguém pensar que a comercialização de réplicas vai dar ao museu muito dinheiro. Engane-se quem assim pensou. Nenhum numismata minimamente esclarecido gastará um cêntimo num produto que vale zero. É uma má decisão, mas quem corta é porque riscou.