quinta-feira, dezembro 30

NO RAMO DO LUAR


O caule do sorriso a pétala da dor
Dador que doa o caule sem raiz
E o sol que bate ali e que faz noite
Longe da seiva oca aqui do amor
Que não está pois que não está
Ou se perdeu no nimbo branco do além
Que entardeceu e desmaiou na noite
E mora aqui ali no ramo do luar

José Silva, 30.12.2010

terça-feira, dezembro 28

O TACHO E A TAXA

Fiquei a pensar: a que tacha se referia ela? Falava de sinistralidade, e cá para mim, qualquer coisa ali não batia certo. Porque, de tachas, apenas me recordo aquelas de cabeça redonda, larga e chata, com que fixamos alguns objectos, ou as da sujidade com que se mancha a honra das pessoas. Ah, e já agora, também me lembro da tacha bem arreganhada, o que, foneticamente, levanta um problema bastante delicado: e se dissessem ao nosso primeiro-ministro que anda a arreganhar a taxa em demasia? O que iria ele pensar, hem? Mas o melhor é pormos a coisa no masculino e resolvemos o assunto. No masculino? Mas tacha tem masculino? O Zé disse-me que sim, que é tacho, mas nós sabemos que isso não é possível, que tacha não é feminino de tacho, mas acreditem que ele deu-me tais explicações que ainda hoje tenho as meninges a latejar de tanto aprofundar a questão. Mas pronto, ela queria dizer taxa, aquele tributo arrecadado pelo Estado a título de prestação de determinados serviços, aqueles serviços que dizem que existem, mas não existem, a não ser que, por artes mais que metafísicas, deixemos de esperar mais do que doze horas, a ganir como cães esfomeados, nas filas horríveis de algo parecido com um hospital. Mas, afinal, por que carga de água os nossos políticos passam a vida a esticar a taxa?

quinta-feira, outubro 14

A CULTURA DAS PALAVRAS

O signo linguístico, a palavra, tem significante e significado, qualquer estudante de língua portuguesa sabe estabelecer esta diferença. O significado é aquilo que a palavra, dita ou escrita, quer dizer. O problema das palavras é que, numa parte substancial de casos, têm um significado digamos “básico”, a sua denotação, e outro ou outros significados, as conotações. Quem pedir uma banana e receber uma banana, accionou a denotação. Pode comer o fruto à vontade, ele é rico e nutritivo. Se a banana é o “único fruto do amor”, isso mesmo, aquilo em que está a pensar, então moveu uma conotação. A banana não é já o fruto, mas o órgão sexual masculino. As palavras são assim, agem em contexto, significam em contexto. Sem ele, o contexto, é complicado dar significados às palavras, quando muito vale a denotação. Mas as palavras são maravilhosas, sejam nomes, sejam adjectivos, sejam até advérbios… Sabia que a palavra embora resulta de em boa hora, ou que doravante resulta de de ora avante ( = de agora em diante)? Alguns adjectivos possuem informações culturais que são verdadeira mina de conhecimentos. Quem não sabe o significado de eólico, boreal ou hercúleo? Claro que todos sabem. Eólico é relativo a Eolo que, segundo Homero, era deus dos ventos. Boreal é relativo a Bóreas, titã do vento norte. Hercúleo tem relação com Hércules, aquele latagão. Titânico é relativo ao gigante Titã, irmão mais velho de Saturno. Lésbica deriva de Lesbos, ilha grega, onde Safo (menina) dedicava poemas às meninas. E os afrodisíacos? Esses são filhos de Afrodite, deusa grega do amor. Quanto à Vénus, era romana, linda e muito, muito amorosa. Tão amorosa que transmitia, parece, umas doenças venéreas que são, evidentemente, de evitar. Como se vê, as palavras estruturam frases, e as frases transmitem sentidos. Mas as palavras transportam também em si cultura, e esta só é hermética para quem não a quiser conhecer. A propósito deste adjectivo hermética, aprendamos mais umas coisas. Hermes, latino, é o deus Mercúrio grego. Em arquitectura há pilares herméticos, isto é, encimados por um ícone representativo do deus Hermes. Mas, se a cultura é hermética, a culpa não é do latino, é do egípcio! Pois, que Hermes Trismegisto era africano e criou, no século I, uma doutrina ligada ao gnosticismo e à alquimia. Esta doutrina era hermética, mesmo muito hermética...

De Metakritica,2006

domingo, agosto 8

DIZ-ME

Diz-me: porque devo olhar a lua
Nas noites tão sofridas e tão frias,
Se de manhã, quando o sol se agiganta
Para além das montanhas,
Eu posso sentir as nuvens largas,
Cavalgar as asas rápidas dos pássaros
E ser feliz no azul casto do céu?

José Silva, 08.08.2010

sexta-feira, abril 23

O CÃO, A AVE E NÓS

Estava um dia de cinza e a chuva espreitava das nuvens. Cheirava a terra molhada, aquele cheiro que nos transporta para os campos ressequidos do passado. Quando estacionei o carro, bem junto ao muro da escola, levava na ideia o café quente que sempre tomo às sete da tarde. Era um café, e não um cão. Mas foi ele que se me atravessou nos olhos quando abri a porta, e me assustou ligeiramente. Bolas! O raio do cão ia-me atirando um chilique. Mirando bem, no entanto, e cogitando: porque estará o não culpado animal fixo no lajedo? Aproximei-me ligeiramente a medo e confirmei: cheirava um melro, um melrito pequeno e depenado, que piava de bico bem aberto pensando ser a mãe. Caíra certamente do ninho e o cão preparava-se para não perdoar. Quadro assim merecia adequada fotografia, mas faltava-me a máquina. Fiz menção de enxotar o canídeo, mas ele resmungou. Ameacei-o com um pontapé e ele afastou-se ligeiramente. Aproveitei então para acariciar o pássaro, que abria o bico em piadelas de fome. O cão aproximava-se, mas eu afastava-o. De repente, vejo cair sobre mim uma sombra negra, ameaçadora e gritante, em jeito de ataque suicida. Mas que raio…? Desviei-me a tempo da furiosa bicada. Porque de bicada se trataria, não tivesse eu movido a cabeça para a minha esquerda bem surpresa. Porque o melro, ou a melra, tinha-me visto com o seu filhote ao colo e em plena carícia. Nunca tal me tinha acontecido: sujeito a rosnos e a bicadas, tudo por causa de um ser angélico completamente depenado. Atirei-o para dentro do jardim, para um tufo de relva bem amanhada e verde. E fiquei à espera, um pouco mais longe, para não interferir no trabalho parental. E vi dois melros, o pai e a mãe com certeza, chilreando forte em torno do seu filho. E comovi-me. Porque nunca pensei que as aves cuidassem assim dos seus filhos, se preocupassem com eles, os defendessem com ataques aos agentes invasores. E comparei esta acção com a acção humana, com alguns pais que abandonam os filhos, que não cuidam do seu crescimento nem da sua educação. Serão as aves mais humanas do que nós?

quarta-feira, abril 21

TRADUTTORE TRADITORE

Sempre que posso, leio originais. Desde que fiz a experiência com uns franceses do século XIX (Flaubert, Zola…), fiquei vacinado. Os italianos têm razão, o traduttore tende a ser um traditore, e, no que respeita aos recursos estilísticos característicos de cada autor, é um traidor completo. Não acreditam? Comparem o original de Poe com as traduções de Assis e de Pessoa e digam qualquer coisinha:


EDGAR ALLAN POE - (1809-1849) - THE RAVEN ( O Corvo)

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As some one gently rapping at my chamber door.
‘ ’Tis some visitor,’ I muttered, ‘tapping at my chamber door—
Only this, and nothing more.’

Machado de Assis

Em certo dia, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais".

Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»

quinta-feira, abril 1

MUSEU D. DIOGO DE SOUSA:
OFICINA MONETÁRIA?


Leio no “Diário do Minho” que o Museu D. Diogo de Sousa vai produzir e comercializar réplicas de moedas romanas achadas em Bracara Augusta. Não sei se o objectivo principal é a divulgação ou a comercialização, mas tenho uma opinião sobre a decisão do museu. Na minha qualidade de numismata, coleccionador e estudioso da moeda, verdadeiro interesse têm as moedas originais, com as suas pátinas características, com as marcas de terra ou de ferrugem. Tenho horror às falsificações, às viciações e, como não podia deixar de ser, às cópias ou às réplicas. Nos sítios de leilões, nas feiras de numismática, até em grandes feiras internacionais, a existência de tais artefactos introduziu no coleccionismo algo que não existia até aqui: o medo de comprar moeda não verdadeira. Hoje, para se ser um verdadeiro numismata de moeda antiga, exige-se um grande conhecimento histórico, para além de conhecimentos na área monetária e, principalmente, da metrológica, sob pena de se coleccionar um objecto falso, que de moeda nada terá, evidentemente. Fico, portanto, surpreendido com a decisão do Museu D. Diogo de Sousa. Em primeiro lugar por se transformar numa “oficina monetária”; depois, por alguém pensar que a comercialização de réplicas vai dar ao museu muito dinheiro. Engane-se quem assim pensou. Nenhum numismata minimamente esclarecido gastará um cêntimo num produto que vale zero. É uma má decisão, mas quem corta é porque riscou.

segunda-feira, março 29

MARISA!...

Há da vida coisas belas, momentos únicos que guardo para sempre no meu coração. Curiosamente, tais momentos cinzelaram-se ao som de vozes inolvidáveis, vozes principalmente femininas que me fizeram tremer de emoção. Registei-as e refiro-as. Não dou com certeza novidade nenhuma, pois tais vozes são geniais e universais. A primeira foi Amália. Inesquecível no seu timbre português. Depois, Emma Shapplin e Marisa, vozes do outro mundo que me fizeram e fazem sonhar. Finalmente, Tarja Turunen, lá de longe, com ritmos de pingos de água. Continuo a ouvi-las e embalo-me. Cai chuva lá fora. Ouço “chuva” e rendo-me a Marisa.

domingo, março 28

O HOMEM REVOLTADO

Houve o tempo, o “meu” tempo, de realismos à Eça ou à Cesário, ou de existencialismos à Sartre, à Beauvoir ou à Camus. De Sartre, li com sofreguidão La Nausée, L’être et le Néant e Qu’est-ce que la littérature. Da Simonel li Les Mandarins, livro escrito exactamente no ano do meu nascimento. Por arrasto, fui até Camus. Porque sempre gostei de ler os autores na língua original ( quando domino as línguas, evidentemente), atraquei em L’Étranger, Le Mythe de Sisyphe, La Peste e L’Homme Révolté. Nesta minha fase “existencial”, aprendi que a literatura pode ( deve?) ser um retrato fiel da realidade, e que a sua função pode ( e deve?) ser social, isto é, o livro deve estar ao serviço da multidão. Porém, quanto mais mergulhava nestes livros, de temáticas muito escuras ( náuseas, pestes, revoltas…), mais me apercebia de que a vida é também sol e alegria, brisa azul à margem do mar. E deixei Camus. E os outros. E virei-me durante muito tempo para os poetas. Até hoje. Por acaso, ao mexer numa das estantes da casa, dei de caras com O Homem Revoltado. Abri-o, folheei-o, e, não sei porquê, pensei no ser humano português. Haverá algum português que, de uma ou de outra forma, não se sinta, neste momento, revoltado com a sua circunstância? É fácil hoje ser “poeta” em tempos de perturbação e de agonia? Quem, passando fome, olha com olhos de sol o verde-azul do largo mar? Fechei o livro e não quis relê-lo. Preferi sentar-me com Caeiro e sorrir com a bela Lídia à beira do rio.

sábado, março 13

A propósito de PORCOS

Porco é palavra dicionarizada. Sabemos o que denota e, creio, o que conota. É nome masculino, designa um animal muito porco, que chafurda na porcaria, mas que nos dá umas febras (gosto mais das febras do que das fêveras, principalmente se forem bem grelhadas e regadas com uma boa pinga) e uns presuntos de se tirar o chapéu ( já sabemos que ninguém usa chapéu, mas escapa!). É também, como atrás se viu, um adjectivo muito forte, principalmente se o nosso vizinho cheirar mal e lho dissermos de chofre na cara. Coisa que, por recato e boa educação, nunca faremos, evidentemente. Mas não faremos nós, a plebe, os descamisados da gleba. Porque, aí pelas bandas das Europas, e das Américas, e até das Ásias, está na moda insultar-nos, a nós e a uns pobrezinhos que nos rodeiam no mapa, soprando-nos com um valente PIGS. Esta palavra, que é um acrónimo recente, refere os quatro países mal-cheirosos ( mal-comportados financeiramente), a saber, Portugal, Irland, Greece e Spain. Estes países são uns valente pigs! O problema é que, de tão macérrimos* que somos, acho que nem o osso se aproveita… Mas, aqui para nós, que ninguém nos ouve, que acrónimo poderíamos criar para espetar na cara daquela gente, que assim nos insulta sem receber troco? Por exemplo, e se fosse FUKUSA? Façam o exercício. Poderia ser a France, o United Kingdom, os United States of Americas, etc. E “prontos”, dávamos um valente fukusa àquela gente...

* Macérrimo = superlativo de magro.

A sigla consiste na representação de um nome, curto ou extenso, por meio das suas iniciais. (CGD)
O acrónimo, por sua vez, consiste na simplificação de um conjunto de palavras ou sílabas, tendo em vista, por exemplo, a facilidade de memorização. (PIGS)

quarta-feira, março 10

OLÁ, OLÉ, MERELINENSE!...


S. Pedro de Merelim é uma freguesia de Braga. Por arte da dedicação de algumas pessoas, vem desenvolvendo um projecto na área do futebol absolutamente fantástico, tendo em conta os seus frágeis orçamentos. A sua equipa sénior está na II divisão nacional. Se pensarmos que nesta divisão estão equipas como o Boavista, o Tirsense, o Moreirense ou o Vizela, já se vê o quão hercúleo é o esforço para se manter nesta divisão. Os juniores frequentam habitualmente o Nacional. Ainda há bem poucas semanas empataram com o F. C. do Porto, venceram a Académica de Coimbra e o Sporting de Braga, três colossos do futebol português. Acham pouco? Eu não. Acho simplesmente extraordinário! As duas equipas de Juvenis comandam destacadas as suas séries. Neste domingo, o Merelinense venceu o Sporting de Braga por, imagine-se, 4-0! A equipa principal de Iniciados comanda também a sua série e luta pela subida ao Nacional. Quer dizer: o Merelinense é um clube com uma mentalidade vencedora absolutamente incomum e deve receber de todos os bracarenses e portugueses o merecido aplauso. Pela minha parte, cá está o meu modesto contributo. Sou sócio do clube com grande prazer, vibro com as suas vitórias e enalteço o trabalho dos grandes carolas, que tudo dão sem nada receber, a não ser a alegria de ver os jovens alegres e felizes.
Bem hajam, merelinenses!

sábado, março 6

AS REFORMAS E O PARADOXO DE ZENÃO

Lembram-se do paradoxo de Zenão, de Aquiles e da tartaruga? Pois é, o Aquiles bem queria apanhar a tartaruga, mas, por artes do diabo, quando chegava junto dela já ela tinha fugido… E retomava o movimento. Mas quando chegava outra vez junto dela, ou ao local onde tinha estado, já ela tinha andado mais um pouquinho. E assim até ao infinito. Tenho pensado muito neste paradoxo a propósito das aposentações, vulgo reformas, dos sacrificados portugueses. E não é que eles queriam apanhar a tartaruga inteirinha já em muitos anos do passado? E não é também que o raio da tartaruga dá sempre um passo em frente, e nunca é apanhada? Era aos cinquenta, e o Aquiles perto, junto lá da meia centena, e ela pimba, andou para os 55. E o Aquiles, coitado, já a resfolegar, acelerou até aos 55. Só que, por artes ainda por descobrir, o carapácico réptil lá saltou para os 60… Aquiles parou, atónito e pensou: mas será que o meu socrático filósofo tem mesmo razão e o paradoxo é mesmo universal? Vamos lá experimentar outra vez. E quase de bofes atirou-se aos 60. Mas não, já lá não estava. O outro tinha razão: aos sessenta nem se tenta. E Aquiles coçou o queixo. 62? 65? 67? 70? Não, não corro mais e seja o que Deus quiser. Talvez a tartaruga e o filósofo morram pelo caminho, muito antes de mim. Nesse momento, ultrapassá-los-ei. De bengala, corcovadinho, mas impante e bem feliz.

quarta-feira, fevereiro 3

CALHANDRICE

Por acaso já conhecia a palavra, o meu pai usava-a de vez em quando, mas, pelas reacções, parece vocábulo desconhecido. Imagino que tenha origem em calhandro, que era o vaso, vulgo penico, onde se deitavam os dejectos e coisas similares. Daí talvez a calhandrice, a porcaria, a bisbilhotice, o falatório. A palavra está em verbete no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa com este significado. Quem a usou, usou bem. Não sei é se disse bem. Mas isso é outra loiça.