sexta-feira, maio 27

SUBREPTÍCIO ou SUB-REPTÍCIO?

A propósito de uma observação feita na aula por uma aluna, como escrever a palavra sub-reptício? Nos termos do Acordo Ortográfico anterior, não havia dúvida. O prefixo sub, quando relacionado com palavra seguinte começada por r, separava-se dela por hífen. O novo Acordo, porém, é omisso relativamente a este fenómeno. Na alínea a) da Base XVI apresenta o exemplo de sub-hepático, e nada mais. Deduz-se, portanto, que palavras como sub-raça, sub-região, sub-regional, sub-reitor, sub-rogação, sub-rotina ou sub-reptício, perderão o hífen. O resultado será esquisito: subraça? Subrotina?

Aguardemos clarificação.



Observação: no Guia para a nova ortografia editado pelo ILTEC, em edição dos ministérios da Educação e da Cultura, diz-se que os elementos de formação (neste caso, sub-) continuam a separar-se com hífen da palavra a que se associam quando terminam com n, m , b ou d e a sua aglutinação provoque uma leitura que não reflita a pronúncia da palavra ou viole uma restrição ortográfica (exemplo: sub-regulamentar). Este considerando do Guia não resulta de informação directa inscrita no Acordo (que é omisso a este respeito), mas é lógico se  bem analisado o facto linguístico em causa. Desta forma, sub-reptício continuará a escrever-se assim: SUB-REPTÍCIO. 






segunda-feira, maio 23

FIM DE SEMANA

Escrevo fim de semana no processador de texto.  Surgem-me uns tracinhos verdes às ondinhas sob a expressão. Experimento fim-de-semana. Parece que está correto, pelo menos não aparece nenhuma indicação. Consulto o Dicionário Houaiss: nenhum verbete, nenhuma menção. Consulto o Dicionário da Academia de Lisboa: lá está, bem registado em verbete, a palavra fim-de-semana, com hífenes bem marcados. Em que ficamos? Em Portugal, parece consagrada com hífen pelo uso. No Brasil não. 

Diz o Acordo, Base XV, 6 : “ … não se emprega em geral o hífen, salvo algumas exceções já consagradas pelo uso…”. Sirvam pois de exemplo de emprego sem hífen as seguintes locuções:

a) Substantivas: … fim de semana

Confuso? Acho que sim. Vou aguardar por um bom dicionário português, a ver como se propõe. Entretanto, vou respeitar e passarei a escrever fim de semana.

sábado, maio 21

ACHAS?

Ficámos na dúvida. Não se tratava do verbo achar, aí ninguém se engana, é com ch e pronto. Mas alguém se lembrou de deitar achas para a fogueira da discussão e já sabemos como é: a dúvida é mais matreira que a raposa e não dá tréguas às mentes desvairadas. Acha é com ch ou com x? Torceu-se o nariz, mas a estatística ganhou: é acha mesmo. Tal como o chichi. E o chi-coração. Sempre com ch. E para recordar, cá fica o registo.
LES CARESSES DES YEUX

Les caresses des yeux sont les plus adorables ;
Elles apportent l'âme aux limites de l'être,
Et livrent des secrets autrement ineffables,
Dans lesquels seul le fond du coeur peut apparaître.

Les baisers les plus purs sont grossiers auprès d'elles ;
Leur langage est plus fort que toutes les paroles ;
Rien n'exprime que lui les choses immortelles
Qui passent par instants dans nos êtres frivoles.

Lorsque l'âge a vieilli la bouche et le sourire
Dont le pli lentement s'est comblé de tristesses,
Elles gardent encor leur limpide tendresse ;

Faites pour consoler, enivrer et séduire,
Elles ont les douceurs, les ardeurs et les charmes !
Et quelle autre caresse a traversé des larmes ? 

Auguste Angellier (1848-1911)

sexta-feira, maio 20

DECLARAÇÃO DE AMOR

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter subtilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la — como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E esse desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo (1984)

terça-feira, maio 17

A DOR É VÃ E O VINHO É BREVE

Leio os jornais, vejo televisão, ouço a rádio, viajo na internet. Portugal, rimando com festival e carnaval, é todo um longo cirro negro. Apetece aniquilar os sentidos, mas eis que ouço Marisa e a guitarra pungente de Paredes. Limpo os olhos no verde de Caeiro e na magia de Carlos de Oliveira, aprendiz de feiticeiro imortal: a vida é o bago de uva macerado nos lagares do mundo e aqui se diz para proveito dos que vivem que a dor é vã e o vinho é breve.

domingo, maio 15

DOS PALABRAS

Esta noche al oído me has dicho dos palabras
Comunes. Dos palabras cansadas
De ser dichas. Palabras
Que de viejas son nuevas.

Dos palabras tan dulces que la luna que andaba
Filtrando entre las ramas
Se detuvo en mi boca. Tan dulces dos palabras
Que una hormiga pasea por mi cuello y no intento
Moverme para echarla.

Tan dulces dos palabras
?Que digo sin quererlo? ¡oh, qué bella, la vida!?
Tan dulces y tan mansas
Que aceites olorosos sobre el cuerpo derraman.

Tan dulces y tan bellas
Que nerviosos, mis dedos,
Se mueven hacia el cielo imitando tijeras.
Oh, mis dedos quisieran
Cortar estrellas.

Alfonsina Storni (Argentina, 1892-1938)

quarta-feira, maio 11

J'AI DIT À MON COEUR

J'ai dit à mon coeur, à mon faible coeur :
N'est-ce point assez d'aimer sa maîtresse ?
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse,
C'est perdre en désirs le temps du bonheur ?

Il m'a répondu : Ce n'est point assez,
Ce n'est point assez d'aimer sa maîtresse ;
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse
Nous rend doux et chers les plaisirs passés ?

J'ai dit à mon coeur, à mon faible coeur :
N'est-ce point assez de tant de tristesse ?
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse,
C'est à chaque pas trouver la douleur ?

Il m'a répondu : Ce n'est point assez
Ce n'est point assez de tant de tristesse ;
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse
Nous rend doux et chers les chagrins passés ?


Alfred de Musset
(1810-1857)

quinta-feira, maio 5

A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

A – A proposição pode dizer algo (pode ser um “quadro”) porque tem uma estrutura comum com o que representa.

B – O elemento comum chama-se forma de representação. Esta pode ser diversa: forma da cor, forma do espaço, etc.

C – Não obstante serem variadas as formas de representação, uma proposição (“um quadro”) deve possuir a forma lógica que é a forma da realidade em geral (2.18).

D – Logo, a proposição ( o “quadro”) é também um quadro lógico (2.182).

E – Todo o dizer exige esta forma de representação, esta estrutura lógica.

F – O objecto pode ser mostrado pela linguagem, i.e., a linguagem pode evidenciar o objecto.

G – O objecto pode ser representado, dito, i.e., a linguagem, através dos sinais, pode formar uma imagem do objecto.

H – Logo, “ o quadro não pode representar a sua própria forma de representação, ele apenas o mostra” (2.172)

I – Isto porque: a) se a implica como condição do seu valor representativo, b) não pode fazer dela, ao mesmo tempo, o seu objecto.

*Sobre o Tractatus, de L. Wittgenstein
ORDEM MARAVILHOSA DE ALGUMAS 
DAS PAIXÕES DA ALMA

A primeira paixão é o amor e desejo da coisa boa; e o seu contrário é o ódio e aborrecimento da coisa má. Depois do amor e do desejo segue-se a esperança, que é acerca da coisa boa futura ou afastada; e o seu contrário é o temor, que é sobre a coisa má por vir ou apartada. E quando com o amor e desejo se junta a esperança, sucede o seguir-se a coisa boa amada, assim como quando com o ódio e o aborrecimento se junta o temor, sucede o fugir da coisa aborrecida. O fim é o gozo e deleite da coisa boa presente e conjunta; e o seu contrário é a dor e a tristeza da coisa má presente e conjunta. Esta paixão, que é a última a alcançar-se, convém saber, o gozo e o deleite da coisa boa, é a primeira intenção. Na verdade, ama-se e deseja-se para alcançar gozo e deleite, espera-se, depois, e segue-se, e, por tudo isto, aquieta-se e repousa o ânimo nesta operação. E, depois de ter uma coisa, ama-se pelo presente, mas deseja-se pelo futuro.

De maneira que, ao filosofar rectamente, de qualquer arte que se use, o amor e o desejo são uma mesma coisa essencialmente, embora na maneira de falar alguma espécie de amor se chame mais propriamente desejo, e outra se denomine mais propriamente amor.

Leão Hebreu, Diálogos de Amor