sexta-feira, março 6

ENTRAR PARA FORA?

No âmbito linguístico e literário, o pleonasmo é uma redundância. Por norma, enfatiza algo que já foi dito, ora de forma simples ou compósita. Subir para cima, descer para baixo ou gritar alto são pleonasmos comuns, usados pelos utentes da língua nas mais diversas circunstâncias. Tal como comum é o pleonasmo entrar para dentro. Mas, será esta expressão sempre pleonástica? Isto é, poderei em alguma circunstância entrar para fora? Claro que não, dirão todos “em uníssono”. E eu direi que sim. Ou pelo menos, dizia um treinador de futebol que tive nos meus tempos mais imberbes. Era argentino e tinha um sotaque brasileiro interessantíssimo. Nos momentos tácticos, colocava-nos à entrada da grande área, mas fora dela. Lembremo-nos que a área é delimitada de forma perpendicular, em que as linhas referenciais são uma horizontal e uma vertical. Dizia-nos então no seu timbre bem sonante:

Paulão, você está aqui perto da área. Se movimenta, né? Justino, você também, se movimenta, né? Paulão, você entra p’a dentro, hem? (da linha horizontal). Justino, você entra p’a fora (da linha vertical). O Nené bate a bola na linha, Justino você cruza e Paulão faz gol. Pô, é simples!

Às vezes a jogada resultava. A explicação também. Como se vê, nem sempre pleonasmo é vício. Às vezes é virtude... principalmente quando resulta em golo.

quinta-feira, março 5

CARCANHOL

Rima com espanhol, mas até este anda presentemente à brocha. Basta ver o desemprego a voar para os vinte por cento e concluímos da veracidade da coisa. Por estas bandas, como por aquelas, o carcanhol, o celebérrimo meio de troca convencional que, ou tilinta na carteira ou apodrece no banco, começa a escassear. Falo do dinheiro, esse malandreco, que já foi romano, alfonsim e de outras majestáticas barbas, e que hoje é de puríssimo plástico, ou nele virtualmente incluso. Quando o pilim é miúdo, anda trocado no algibeira dos pobres. Pilim em ricaço não tilinta, que é isso de trocados na carteirinha suja? Porque anda por aí muito dinheirinho sujo, pelo que se vai vendo nos Madoffs e nuns banquinhos cá da parvónia…Não sei porquê, mas sempre me intrigou a forma como alguns grandes barões fazem dinheiro, como nele nadam em qualquer praia das Caraíbas. Nem como o lavam, sem esfregona nem balde, bastando-lhes um simples clique, desta forma, assim, com os dedos a raspar…

O carcanhol, pois, que o Dicionário Houaiss sinonimiza em 127 formas diferentes em todo o universo de língua portuguesa. E não esgota o repertório! Querem ver a lista? Ora aí vai: algum, arame, bagaço, bagalhoça, bagarote, bago, baguines, bagulho, bala, barro, bazaruco, bilhestre, bilhestro, bolsa, bomba, boro, boros, broca, brocha, cabedal, cacau, calique, cantante, capim, capital, caraminguá, carcanhóis, caroço, cascalho, cédula, changa, chapa, chavo, chelpa, cheta, china, chinfre, cobre, cobres, cominho, conques, contado, coscorrinho, coscos, cunfres, cunques, cuprém, erva, estilha, falépia, felpa, ferros, fundos, gadé, gaita, gás, gimbo, grana, guines, guino, guita, jabaculê, jubungo, jimbo, jimbomgo, jimbra, João-da-cruz, lâ, legume, lençol, luz, maço, maquia, marcaureles, marco, massa, metal, milho, moeda, mosca, mufunfa, música, narta, níquel, nota, numerário, numo, óleo, ouro, pacotes, pápula, parnau, parné, parneque, parni, parrolo, pasta, pataca, pataco, patacos, pecúnia, pecuniária, pelga, penique, pila, pilcha, pilim, pilimpilim, prata, quido, roço, sapécoas, tacho, taco, teca, tostão, tubos, tuncum, tusta, tusto, tutu, unto, vento, verba, vintém, zergulho, zinco.

E os sinónimos que aqui faltam, usados aqui e ali pelo bom povo de língua portuguesa. Quem disse que a malta anda tesa não errou. Mas errou se falava de palavras. Porque, dessas, temos nós os bolsos cheios.

terça-feira, março 3

Escritores, esses novos proletários…

Leio no Magazine Littéraire e não me admiro : o caminho da criação literária enche-se de escolhos, entre os quais avulta a ausência progressiva de leitores. É assim em Inglaterra, pelos vistos é assim em França e, evidentemente, é também assim em Portugal. O problema pode sintetizar-se na afirmação de Jean-Marc Roberts, diretor da Stock: «dans quelques années, il va devenir impossible aux éditeurs de faire leur métier : soutenir des projets littéraires qui ne sont pas rentables à court terme, et permettre à des écrivains de vivre de leur plume». Na pior das hipóteses, enterrado o criador, de que alimentaremos o nosso insonso espírito? A leitura é a vitamina do coração. Vitaminemo-nos lendo. Ao fazê-lo alimentamos também o criador, ou, se preferirmos, o Criador.

segunda-feira, março 2

EXPECTÁVEL

Escrevo nesta página expectar. Curioso, aparece-me sublinhado a vermelho. O verbo não existe? Existe, e significa estar ou permanecer em expectativa, ter esperança, esperar... O étimo é naturalmente latino e forma o adjectivo em -ável, como todos os verbos em –ar. Portanto: expectável.

Expectável é adjectivo da moda, e vai sendo escrito como sinónimo de provável, ou esperável, este caído em desuso não se sabe bem porquê. Mas soa bem, dá um ar da sua graça, empina o nariz de quem o pronuncia. Principalmente se for político. Ou guru das finanças, daqueles que ganham milhões e vêem as empresas em derrocada. É expectável que a bolsa recupere? Claro, se entretanto a coserem bem cosida. Porque com o buraco que tem não há pilim que lá se aguente.

domingo, março 1

A ética e a dor de barriga.

Num texto publicado no Público, dizia Eduardo Prado Coelho que, hoje em dia, a cultura ou a ética se tornaram argumentos secundários numas eleições. Eu diria mais: nem são argumentos, nem, logicamente, são secundários. Simplesmente, não existem. Que é isso de cultura, ou que interesse tem na caça ao voto? Quando muito, a cultura da batata. Porque a lógica, às vezes, é mesmo uma batata. E depois, a ética, meu Deus, a ética, essa coisa universal que os políticos torcem na sua moral indecifrável… Só de ouvi-los, que dor de barriga, como diria Xenofonte a propósito da ingratidão filial. E já agora, jovens, leiam Savater!