sexta-feira, maio 29

A LÍNGUA
     Desde Ferdinand de Saussure, toda a gente sabe o que é a língua. Enquanto sistema que serve uma comunidade, a língua é logicamente usada, e move-se. Pensamos na língua portuguesa, por exemplo, nos arcaísmos, nos neologismos, nos acordos gráficos, nas discussões acaloradas em torno da coisa e concluímos que sim, é verdade, a língua move-se. 
    A língua, porém, é também um órgão muscular, como diz o dicionário, recoberto de mucosa, e que, entre outras responsabilidades, também ajuda a produzir sons. Com ela, e isso é que é realmente relevante, nós podemos fazer coisas, seja objetivamente, em sentido literal, seja em sentido figurado. O povo, esse malandro que ninguém sabe quem é, sempre se entreteve nas figurações, e assim atribuiu à língua funções que ela, na sua humilde casota, nem se atreveria a pensar. Por exemplo, quem não mordeu já a língua, ficando a ganir durante uns bons momentos? Não é coisa boa, não, mas será muito bom que se morda a língua em situações de conflito, não vá o diabo tecê-las e saiam algumas verdades inconvenientes para o patrão… 
     Há pessoas que, com certeza por deformação genética difícil de explicar, têm a língua solta, algumas têm uma língua viperina e outras, ainda, têm uma língua de palmo e meio. Se vão a um especialista dessas deformações, o que poderá ele dizer? Que sejam operadas? Que mudem de língua? Ou que, eventualmente, a engulam? Mas, engolir a língua, além de causar grande desconforto físico, também causa desconforto psicológico. É que, de língua assim engolida, as pessoas nem podem respirar, quanto mais falar… Em vez de engolir podem, no entanto, dobrá-la, o que poderá ser solução menos dolorosa. 
     O especialista poderá então dizer: olhe, meu amigo, quando quiser falar, não engula a língua, dobre-a. Vai ver que se sentirá muito melhor. Está-se mesmo a ver que, em algumas situações, o doente vai reagir, e dizer qualquer coisa como ó senhor doutor, mas como vou dobrá-la se eu tenho tudo na ponta da língua? Aliás, eu tenho necessidade de a desenferrujar de vez em quando, se a engulo ou dobro nem posso deitá-la de fora. E isso não é bom, senhor doutor, que eu gosto de deitá-la de fora à minha vizinha… Ó senhor doutor, por favor, não seja indiscreto, não bata com a língua nos dentes, olhe que eu respeito muito a senhora… Nem seja má-língua, que eu também não sou…
     O doutor, perante esta reação, que poderá dizer? Das duas uma, ou concluirá que não estão a falar a mesma língua, ou que a dita é realmente um músculo muito difícil de agarrar. Se a língua é de vaca, come-se. Se a língua é de gato, saboreia-se com um chazinho. E se a língua for da sogra? Vai também com um chazinho ou foge-se?

quarta-feira, maio 27



Acabo de editar o livro "Língua e Literatura - Diversos". A sua apresentação pública realizar-se-á no próximo dia 5 de Junho, sexta-feira, na Escola Secundária Alberto Sampaio, pelas 18 horas. Este livro será apresentado pelo meu filho, Álvaro Silva, a quem agradeço com o meu coração de pai. Naturalmente, gostaria de dar um grande abraço aos meus Amigos que, com certeza, estarão presentes.


terça-feira, maio 19

O GATO E OS PARDELHOS

O contexto é um jardim triangular: um pinheiro manso muito jovem, uma palmeira com algumas folhas desmaiadas, um centro de flores e um gato. Negro e pequenino, correndo atrás de uns pardelhos bravos que bicavam sementes. No passeio, avó e neta arrastavam o tempo, extenso para uma, mais curto para outra. A pequena, extasiada com o rabo em riste do gatito, ficava-se para trás. A avó, de braço estendido para a retaguarda, olhava em frente e esgravatava o ar à procura da neta.
− Que raio, rapariga, já te disse que não te quero longe de mim. Ou vais ao meu lado ou vais à frente!
Dando uma corrida, a pequena pôs-se ao lado da avó.
Mas o gato eriçava os bigodes, firmava um ar atacante e fixava-se nos pássaros. E a pequena, que nem tinha bigodes nem tinha ar de gato, voltou a parar e especar-se. A mão da avó voltou a esgravatar o ar com ânsias de algo sólido, mas só sentiu o vazio. Foi então que se virou e viu a neta em adoração de um quadro. Acariciou-a e disse:
− O gatinho é bonito, não é?
 É, avó, mas ele quer comer os pássaros.
− Oh, meu amor, ele é tão pequenino… E os pássaros voam, têm asas, achas que se deixam apanhar?
A pequena sorriu e continuou ao lado da avó.


sexta-feira, maio 15

O QUE É UM COPO?


Não sei o que é um copo. Ontem, no café, pedi uma cerveja, trouxeram-me um copo de cerveja (denominação do empregado), conteúdo e continente, evidentemente, mas tão pequeno, tão pequenino, que continuei com sede. No fim paguei a cerveja da ordem, que nestas coisas é de pagar e não bufes. Mas fiquei na minha: hei de saber o que é um copo, para que não voltem a enganar-me. E aqui estou. Abro o Google, escrevo copo e clico em imagens. Eh laaaaá… Tantas formas diferentes, altos, baixos, magros, redondos, côncavos e convexos… E taças, cálices, e até vasos! Estou admirado. Uma taça é um copo? Um cálice é um copo? E um vaso é um copo? No meio desta amálgama vejo uma bola. O que terá a bola a ver com o copo? Os jogadores bebem copos durante os jogos? Levarão vasos para fazer chichi? Ou será que copo tem o feminino copa, e aquela bola é a da copa do mundo? Ui, e aqui em baixo, um sutiã? A que propósito? Copa 18? Isto foi em que ano? 1966? Raios, vou pedir um copo ou uma copa, o continente ou o conteúdo? Não percebo nada disto…


SISTEMÁTICO E SISTÉMICO


Ironicamente, ou talvez não, confessa Mário Quintana: “Até hoje, só conheci dois sinónimos perfeitos: nunca e sempre.” Filosofava, claro, que nesta coisa de se adequar o nome à realidade há sempre ruído de permeio, e o ruído é, bastas vezes, cultural. Dizermos que antigo é sinónimo de velho é uma evidência. Todavia, se queremos atribuir estes adjetivos a nomes específicos, andamos às cambalhotas com os traços semânticos de cada elemento e, não poucas vezes, batemos com o nariz na porta. A igreja é velha? Deve ser antiga. A senhora é velha? Antiquada será, com certeza, mas antiga, isso não. Conclui-se, portanto, que há uma zona de interseção significativa que não corresponde à totalidade da significação das palavras. Antigo e velho são sinónimos, sim, mas não perfeitos. Os adjetivos sistémico e sistemático, e bem assim os adverbiais sistemicamente e sistematicamente, balançam no mesmo tipo de considerações. Apresentados como sinónimos perfeitos em alguns dicionários, não o são no estado atual da língua portuguesa. Sistémico é tudo o que é relativo a um sistema, incluindo-se aqui o sistema estruturado que é o organismo humano. Pensar sistemicamente significa pensar em sistemas, na sua logicização, na sua interpenetração, com vista a um objetivo qualquer. Agir sistemicamente aponta para o mesmo facto. Quando dizemos, no entanto, que devemos agir sistematicamente, ou de forma sistemática, relevamos a nossa metodologia para agir, que consistirá na iteração de ações para cumprir um objetivo. Uma abordagem sistémica focaliza logicamente um sistema; uma abordagem sistemática focaliza a metodologia. Sinónimos perfeitos? Responderia Quintana: nem por isso, nem por isso…