quinta-feira, abril 23

A MORTE DOS AFETOS


A minha professora da quarta classe era extraordinária. Impossível esquecê-la, tão importante foi na minha vida. Se sou um leitor voraz e um escritor compulsivo, a ela o devo. As suas metodologias de ensino, as estratégias utilizadas e, acima de tudo, o amor e o carinho que punha em todas as suas ações só podiam ter consequências benéficas em jovens que, como eu, iniciavam o sue percurso no mundo. Naquele tempo, confortar uma criança com um sorriso ou com um toque nos seus cabelos era possível. Lembro-me de a minha professora me levar, a mim e a outros colegas, para sua casa. O objetivo era proporcionar-nos aprendizagens suplementares, tendo em vista o exame final que se aproximava. As suas duas filhas, mais ou menos da nossa idade, conviviam e aprendiam connosco. E assim evoluímos como seres humanos e nos tornamos homens e mulheres puros e verdadeiros. Noticia-se na televisão o caso de uma professora acusada de um relacionamento com um jovem de catorze anos. Sem nenhuma prova, apenas porque alguém decidiu processá-la. A professora afirma que agiu com o aluno exatamente da mesma forma como age com outros: sempre presente, disponível, usando alguns meios como o telefone ou o correio eletrónico, instrumentos banais do nosso quotidiano. Ouço esta professora a explicar as circunstâncias do seu modelar trabalho e entristeço-me. A nossa sociedade tem evoluído num sentido absolutamente negativo, no que respeita ao relacionamento humano. Como podemos desenvolver as emoções dos nossos filhos se é proibido tocar-lhes, acarinhá-los, abraçá-los, beijá-los? Como se transmite a confiança e o sentimento do amor? Ontem o Rui dizia, em conversa de café: ─ Eu nunca beijei ou abracei o meu pai. Fiquei estarrecido com esta frase. O Rui é, ou será, um ser humano feliz?


sábado, abril 4

SEXTA-FEIRA SANTA

Sexta-feira Santa em Braga. Sol brilhante, uma leve brisa, pessoas cruzando-se em multiplicações linguísticas, de telemóvel em riste sempre pronto a disparar. Ao longo da avenida, flores redondas de todas as cores fazem de mim o centro de um quadro de Kusama. Fundo os olhos no Picoto, no Bom-Jesus ou no Sameiro e sinto no verde variegado toda a esperança da Humanidade. Embrenho-me no coração da cidade e estou bem. Uma senhora espanhola pergunta-me pela sé. Digo-lhe que é ali, e ela dá-me graças. Muitas graças. Ouço comentários sobre a beleza dos monumentos e dos jardins floridos, sobre o sol e sobre as abelhas que labutam. Um quadro de Kusama sintetiza este mundo: amor, cor e alegria. É isto o paraíso? Desço a avenida, vejo duas amigas abraçadas e ouço: − Não te preocupes, minha querida, vai tudo correr bem. Eu estou aqui para te ajudar, não te esqueças! – Há solidariedade no ar. No café, leio o jornal. No Quénia, jovens estudantes universitários morrem em ataques bárbaros. São cristãos. O papa Francisco chora as mortes e aponta o dedo ao silêncio. Pode o céu coexistir com o inferno?