terça-feira, junho 30

O CANTO DA GAIVOTA


Oito da manhã. Uma brisa fresca levanta as cortinas da janela e ele espreguiça os últimos momentos do seu sono. Não sabe se sonha ou se navega em alto mar, mas não se vê em ondas, tão avesso é a barcos e navios. No mar fica nas margens, enrola-se na areia, molha-se de supetão e foge, que as algas têm algemas que nos arrastam para longe. Sonha, então, que nos sonhos os receios são diferentes. E, nele, um pio alegre, bem desperto, não pede licença para entrar pela janela. Mas não é sonho, é mesmo realidade. Levanta-se, abre as cortinas e vê-a, a gaivota branca, planando mesmo em cima do jardim. Uma gaivota em Braga, coisa muito rara de se ver. Segue-lhe as espirais, delicia-se com os pios e as recordações do mar, lava-se de algumas nuvens brancas e do azul fino da manhã. Segue-lhe o voo até desaparecer no cimo da rua, ao lado do jardim, onde um gato acinzentado esgravata ligeiramente a terra. Fixa-se no gato, estuda-lhe os movimentos, e aguarda. Ao longe, no cimo da rua, uma morena engraçada saracoteia. Vai com certeza para o trabalho, muito sincopada, muito concentrada. E assim começa o dia, o dela e o meu, bucólico que chegue. Nada mau, para as oito horas da manhã.

sexta-feira, junho 26

CARANDÁ


É apenas uma imagem. Tronco alto, ramos espalmados, palmeira num centro verde e animais pastando ao longe. A flor, hermafrodita, multiplica-se em tonalidades que se projetam em espiral. O fruto, dizem, é alimento para os animais, e o tronco, forte e alto, usa-se como poste de eletricidade. No Brasil é árvore comum, pede sol mas aguenta o frio. Não sei se esta árvore tem presença em Portugal, nem sei se é a caranda indiana. O mais certo é que exista em qualquer recanto português, com maior probabilidade para o sul, quem sabe em Vilamoura, onde as palmeiras se espreguiçam mais. Aqui, no Carandá bracarense, não a vejo. E gostava de ver, ajustavam-se as realidades, compreendia-se a origem do nome pela simples presença vegetal, enriquecia-se a flora da cidade. Ficamos, no entanto, com a metonímia: o lugar pelo nome, Carandá por Araújo Carandá. E agradecemos à sua viúva a perpetuação. Dona Carlota Araújo fixou, com o seu requerimento à Câmara de Braga, um nome à cidade e deu-lhe o gosto brasileiro. E o nome próprio trouxe o nome comum. Falta a árvore. Será possível trazê-la e plantá-la neste belo jardim?

quarta-feira, junho 24

SEU AZEITEIRO!...

O homem nem sabia onde se meter. Esconder-se atrás das réstias de cebola, ou das ramagens do feijão-verde, era uma boa hipótese. Porque a mulher, vestida de preto e de chapéu à mexicana, berrava em silvos esganiçados:
− Seu azeiteiro!...
Parei, não pelo espalhafato, mas pela força da expressão. Azeiteiro? Mas nesta região nem há oliveiras… E a que propósito seria o raio do homem uma galheta, ou uma embarcação? Aqui nem há baleias…
− Ó amigo, aquilo é que são dois! – Gargalhou um velhote barbudo ao meu lado.
− Eu dou-te o troco, seu azeiteiro! Anda cá que eu dou-te o troco!...
E percebi. Azeiteiro era o adjetivo preferido da mulher, que, de bigode na venta, continuava a insultá-lo. Que lhe teria dito ou feito o pobre homem?       
Acenei ao velhote de barbas, sorri-lhe e ainda lhe ouvi:
− Aquela está com os azeites! – E voltou a gargalhar.
Continuei o meu caminho, pensando em lagares e em líquidos viscosos a propósito de algumas locuções interjetivas que nem do cheiro das olivas se constituem.

AMARGURA


Amar em amarelo e amargura. Compreendo a relação significativa, penso na forma latina amǡrus, relaciono-a com a bílis, com a doença, com a palidez, com o humor amargo. E concluo que real e simbolicamente o amarelo é a cor da amargura. Não sei em que tonalidades, que as há claras e escuras, foscas ou torradas, cinzentas ou cobalto, esverdeadas ou enxofres. E também tonalidades de risos. Risos amarelos, mal-humorados, biliosos, amargos, muito amargos… E daí o amargor e a amargura. A amargura é o sabor amargo das coisas. Figurativamente, é dor moral, tristeza, aflição e angústia. Brincamos às vezes com esta culpabilização da bílis como órgão do sentir, fazemos o mesmo com o pobre coração, levamos tudo para o âmbito das figurações, mas esquecemos que o amarelo da face pode ser – e é, frequentemente – indício de grande sofrimento. Por isso tento sempre uma distinção profunda e relevo a máxima conversacional da sinceridade: se o riso, o sorriso, é amarelo, quantos gramas de humor amargo exprimirá? E quanta amargura? Pesar humores amargos, talvez na balança científica. Medir amarguras, coisas do peito, dores profundas, só de coração aberto, craveira de nónios multiplicados.

sexta-feira, junho 19

DEPOÊNCIA


Não é normal: voz ativa é voz ativa, voz passiva é voz passiva. Nesta estrutura, a passiva, assume-se sempre a presença de um agente que, na estrutura ativa de base, age funcionalmente como sujeito sintático. As regras de transformação passiva são fáceis de apreender, embora haja situações delicadas que resultam das características semânticas dos verbos utilizados. No mesmo sentido, não é difícil compreender como o conceito sintático de sujeito joga com o conceito semântico de agente. Casos há, porém, cuja clarificação das funções semânticas é absolutamente fundamental para a compreensão do jogo sintático. E, convenhamos, as gramáticas normativas tradicionais não explicam isso. O interessante nestas considerações tem a ver, no entanto, não com os verbos, mas eventualmente com os sintagmas nominais que são selecionados pelos verbos. Peguemos, como exemplo, nos verbos levar e apanhar. E registem bem a coisa, que é mesmo de registar! Se a Sandra leva uma saca, ou se apanha fruta, não se duvida que ela é sujeito sintático e agente das ações consideradas. Todavia, se em vez de levar uma saca ou de apanhar fruta, levar uma bofetada ou apanhar pancada, a coisa muda de figura. Ela continua a ser o sujeito, mas deixa de ser o agente das ações em causa. Esse poderá ser, talvez, o marido ciumento. E a Sandra passa de agente a paciente, ou a alvo das ações. Quer dizer, a compreensão das frases que vamos construindo depende de múltiplos fatores, bastas vezes de fatores que ultrapassam a própria inscrição verbal, e que são do âmbito da semântica, do significado das palavras e dos sentidos obtidos no seu jogo sintagmático. Por isso a importância da semântica para a clarificação da sintaxe e, correlativamente, para a compreensão do dito. A gramática tradicional, na linha da gramaticalização latina, chamava a estes verbos de valor passivo verbos depoentes. E há alguns, com efeito. Temos é de conhecê-los.


quinta-feira, junho 18

O ROBERTO


A morenaça descaía-se em requebros. Era uma pita bem amanhada, transeunte na zona dos frangos que, salto aqui, salto acolá, atraía mil olhares concupiscentes. Um, muito baixinho, chamou-lhe gata, e disse miau. Outro, de olhos ferventes, apelidou-a de brasa. E seguiu-a, feito manhoso, em salamaleques disfarçados. Na zona da fruta, chamou-lhe pêssega e ela toda se frutesceu. O homem da peixaria, de olhos inchados, só pode ter pensado em truta, tal o peixão que tinha na sua frente. O que eles não sabiam era que o Roberto tinha posto silicone em certos sítios e vendia frango assado. Que era o principal ofício lá num bar da esquina. De mamas empinadas, adorava trocar os olhos aos palermas do Braga Parque.

terça-feira, junho 16

A MOSCA E A ASNEIRA


Coitada da mosca. Que tem ela a ver com os dislates, com as bocas abertas e com o sorriso asnal? Mas o povo tem destas coisas, gosta de sublimar o ridículo das situações e pimba, toca a malhar no inseto. Porque o que está em causa é o asno, ou a asna, que a fêmea também merece cidadania. Em linguagem mais vibrante, nós gostamos de chamar burro ao animal e pronto, mas o núcleo vibratório é mesmo asinino, e é assim que este dito é reconhecido: quando fulano abre a boca, ou entra mosca, ou sai asneira. E a asneira será o dito, ou o ato, próprio dos asnos, isto é, dos inteligentes de uma certa gleba. Há por aí uma asnada que asneia que nem lhes digo. De tal forma que até o Eco se abespinhou. Alguns asneiristas retrucaram e tentaram, de forma eufemística, cambiar a asneira pela asneirola, mas acho que não conseguiram. O amigo do amigo lá tentou dar explicações pseudocientíficas sobre uma peça triangular de madeira em forma de V com as pernas bem abertas, mas não convenceu ninguém. Definitivamente, os nossos primeiros podem não comer muitas moscas, mas que daquelas profundidades profundas sai muita asnice, lá isso sai!...

ALHURES, ALGURES, NENHURES


Conheço e uso estes três advérbios portugueses. Uso-os quando acho que devo usá-los, fixo-me no seu significado locativo e temporal, e nunca me passou pela ideia pôr-lhes laços de seda por razões estéticas. Há quem não goste deles por essa razão, coisa bem difícil de compreender, a não ser que sintam um cheirinho a alho ou a algas marítimas quando os colam na frase ou no texto. Evidentemente, estas palavras nada têm a ver com os alhos ou com as algas. No caso de alhures, por exemplo, a sua origem é controversa, mas tudo aponta para o provençal alhors que terá andado por ailurs ou aillurs e que evoluiu para o atual ailleurs. Em francês, esta palavra significa em algum lugar, em outro lugar, e é exatamente esse o significado de alhures em português. A forma algures tem o mesmo significado e será uma combinação da forma alhures com o pronome indefinido algum. Na medida em que na sua significação está contida a preposição “em”, evita-se, em geral, o uso desta preposição. Daí dizer-se Vive alhures, ou Vive algures, e não *Vive em alhures ou *Vive em algures. Com preposições diferentes, é possível: Vir de alhures, Vir de algures. O mesmo raciocínio para nenhures: Viver nenhures, Vir de nenhures (em nenhum lugar, de nenhum lugar, com nenhum igual a pronome indefinido). Estas formas têm a particularidade de funcionarem, tal como outras formas deíticas, nas noções de espaço e de tempo. Na física, estas noções estão relacionadas e será essa a explicação para o uso locativo-temporal dos adverbiais em causa.

segunda-feira, junho 15

OU SIM, OU SOPAS

Não vou discutir se o antónimo de “antónimo” é “sinónimo”, ou se vice-versa. No meu português e, creio, no português de todos os portugueses, “junção” significa “ligação” e o seu antónimo, ou o seu contrário, é “disjunção”. Claro que poderíamos gastar aqui umas boas horas a discutir estes conceitos e até poderíamos beber uns copos, se os copos se bebessem. Ou, se achássemos melhor, sempre poderíamos jogar uma entretida lerpa, para plainar as meninges. Portanto, a disjunção: A ou B. Ou A, ou B. Seja A, seja B. Ou sim, ou sopas. Sinceramente, não me interessa saber se F. fica preso ou se sai. Interessa-me é saber por que raio a Marta me abanou o frontispício com aquela coordenada toda ribombante: “Meu menino, ou sim, ou sopas!”. Porque do sim eu sei o significado. Do sopas é que já duvido. Quer dizer, eu como sopa, embebo pãozinho no leite, às vezes o arroz fica uma sopa, sei também que não ganho para as sopas e que, por este caminho, ainda vivo às sopas da minha velhinha mãe que, nos velhos tempos, bem queria alimentar-nos a sopas de cavalo cansado. Às vezes, estas sopas caíam como sopa no mel, e lá nos íamos aguentando… Mas, caramba, o que eu não entendo, juro que não entendo, é o que a Marta me berra. Se lhe digo sim, o que pensará de mim? Se lhe digo sopas, sairá sapato pelo ar? Esta disjunção é mesmo totalitária e devia ser banida da língua. Porque ninguém tem o direito de nos impingir um não à laia de qualquer sopa, por muito saborosa que seja. Definitivamente: sim ou não? Que acham, digo que sim à Marta? Ou digo que aguente, até que as sopas arrefeçam?


ELIPSE LACUNAR

De acordo com o dicionarista, em língua, a elipse é a omissão do termo ou uma frase que se subentende pelo contexto. Se não houvesse a possibilidade de omitir elementos numa frase ou num texto, repetiríamos ad náusea elementos comprovadamente desnecessários para a compreensão do dito. As novas terminologias trazem-nos designações interessantes para fenómenos específicos e que convém conhecer: anáfora do complemento nulo, elipse do sv, despojamento, elipse lacunar, truncamento, pergunta e resposta abreviada, réplica retificadora e elipse nominal. De entre estas designações, gosto da designação elipse lacunar. Não sei porquê, traz-me logo à memória o eclipse lunar e todas as reminiscências românticas da poesia do Soares de Passos. Em geral, a elipse lacunar caracteriza-se por afetar o verbo flexionado da frase ou a sequência de verbos auxiliares e principal. É assim que diz a Gramática da Língua Portuguesa e é assim que acontece. Há, no entanto, um sinalzinho chamado asterisco que sempre me incomodou, pois serve, nestes contextos generativistas, para registar a agramaticalidade das construções. O grande problema é sempre este: como se afere, e quem afere, a agramaticalidade? Porque devo aceitar que a elipse lacunar não ocorre em domínios de subordinação? Isto é, porque devo aceitar como válido o registo de agramaticalidade para o complexo oracional A Ana lê romances e penso que a Maria poemas. (GLP: 2003:902) se não vislumbro agramaticalidade nenhuma? O asterisco é a mancha negra da gramática, o representante de todos os excessos, mesmo quando, eventualmente, estes não são excessivos. A Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mateus et alii  (Ed. Caminho) é excelente para a língua portuguesa. Científica, avançada, nada fácil para o português normal. Estudem-na, se puderem. E relevem os asteriscos.



sexta-feira, junho 12

VERBOS DEFETIVOS


Não é fácil perceber por que razão a tradição gramatical impôs a ideia, mas ela é viçosa na língua: há categorias gramaticais defeituosas, ou defetivas. Pelo menos assim é no que respeita a um certo número de verbos que, ora por razões de eufonia, ora por coexistirem com verbos cujas pessoas são análogas, veem anuladas algumas formas. O conceito de “defeito” não deixa de ser curioso porque, no fim das contas, corrigido eventualmente o verbo, deveria ele apresentar-se de cara absolutamente imaculada. Um dos critérios mais usados para considerar um verbo como sendo defetivo tem a ver com a analogia de formas. É na base deste critério que verbos como pular e polir, por exemplo, entram em choque. No presente do indicativo, primeira pessoa, a forma é a mesma: eu pulo. Realmente, se eu digo Eu pulo a mesa, assim, sem mais, sem contexto, a minha mãe ficará de cabelos em pé, pois temerá pelas minhas sagradas pernas. Mas se eu lhe disser Oh mãe, eu pulo-a depressa com aquela cera, duvido que a velhota não alcance o sentido da frase. Esfregará com certeza as mãos, pois, para além de ficar com a mesa bem brilhante, ter-me-á dado um bom trabalho. Não vejo, portanto, onde se agarram os gramáticos para considerarem o verbo polir como um verbo defeituoso. Aliás, eu acho que os gramáticos evitam o álcool, se não na mesa, pelo menos nos livrecos. Só assim se compreende a fobia ao brande. Porque esta bebida já tem alforria no universo lexical do português, evita-se alguma eventual confusão com O Zorro brande vigorosamente o seu chicote. Mas que confusão, perguntar-se-á? Se eu brando um chicote, estarei de garrafa na mão? E alguém achará que sou brando com as mulheres? Não, brandir não me parece também um verbo defeituoso. No que respeita a eufonias, ou melhor, a cacofonias, a coisa merece atenção. Por exemplo, com o verbo demolir, vocês já notaram se eu disser É necessário que eu demula…? Ainda vão pensar que eu ando de mula lá pelo adro da igreja… Ou com o verbo carpir, se eu disser Antes que eu carpa… Eu, peixe? E se pegar em verbos que ficam ali no limite das cogitações, hem? Por exemplo, embora em Portugal seja fenómeno recorrente, conhecem alguma empresa que fale? Eu, que até falo bem, não falo porque nem sequer tenho dinheiro para falir. À empresa acontece bem pior, que nem língua tem. Empresa que não se preze não fale, quando muito faliu, ou vai à falência. E aqui sim, compreende-se o defeito. Falir é realmente um verbo defeituoso, olá se é! Por último, porque todos devem remir as suas dívidas, empresas inclusas, cumpre-me pagar as minhas. O que faço, remo a minha dívida? Mas não se rema com remos? Então, rimo essa dolorosa dívida? Oh, mas não se rima o verso? Ou será que a remio sem miar? Como se vê, este verbo é tão, tão defeituoso, que nem se deixa conjugar em diversas pessoas. E pronto, agora compreendo porque continua a mácula, e porque os gramáticos nos batem na cabeça como a palavra “defetivo”. A mim bateram-me três vezes, mas aprendi e redimo os meus pecados todos os dias.

quinta-feira, junho 11

O PROMETIDO É DE VIDRO


Ando aqui às voltas com duas palavras, dois verbos muito usados pelos portugueses. O primeiro mais pelos amantes matreiros, que fazem das emoções um gelado em dia de verão. O segundo mais pelos políticos portugueses. Que, como muito bem sabemos, leram e releram todas as cartilhas dos atos de linguagem. Refiro-me aos verbos jurar e prometer. A minha dificuldade, neste momento, consiste em não saber o significado destas duas palavrinhas. Porque, se é fácil saber o que denota a palavra maçã, como saber o que denota o verbo jurar? A maçã é este fruto e já está. Sabemos o que é, saboreamo-lo, e até o relacionamos com os índices de colesterol. Quanto ao jurar, se jura de homem é riso de cão e se os mentirosos são pródigos em juras, fico no arame, instável quanto à significação. Jurar contém em si uma promessa? Mas que promessa, se toda a gente cruza os dedos no ato de enunciação? O Paul Grice bem pede para não dizermos aquilo que pensamos ser falso, mas quê, os nossos políticos só leem as alíneas que lhes interessam… E sabem muito bem que a linguagem, para além de ser informativa, também serve um intuito produtivo: produzir factos e realizar atos. Por isso eles elevam a ene o verbo prometer. Porque, sendo prometer verbo performativo, não pode ser submetido a regras de veracidade: enunciou-se, significou. E, ao assim significar, imediatamente se põe ao serviço daquilo que Chomsky releva como as grandes técnicas da manipulação. Nunca fiz a estatística, mas quase garanto a primazia do prometer no universo discursivo do português contemporâneo. Durão Barroso prometeu, pisgou-se, voltou a prometer fazer frente aos interesses particulares dos Estados-membros na presidência da Comissão Europeia, voltou a pisgar-se. António José Seguro foi mais longe e garantiu, com toda a sua convicção, “aquilo que prometo, cumpro”. Não teve tempo de não cumprir. E as promessas do nosso amigo Sócrates? É verdade, prometeu fazer na cultura o que se fez na ciência. E fez? E o nosso amigo Passos? O Diário de Notícias registou, num dia qualquer, uma atitude extraordinária do nosso primeiro: “Passos recusa prometer baixa do IRS em 2015”. Porque Passos já nem se dá ao trabalho de se recusar baixar, ele vai mais longe no seu ato vertical de linguagem: ele recusa prometer! Porque, ao fazê-lo, mostrava pelo menos a esperança de conseguir algo. Ou obrigava-se a fazer alguma coisa. E o nosso primeiro não quer dar esperança, nem quer sentir-se obrigado. É melhor assim, que lá diz o povo, quem muito promete, nada dá. Nem a lua, nem mundos e fundos, nem pensões, nem vencimentos, nem o raio que os parta a todos. Razão tem o Rui Veloso: o prometido é de vidro!...


terça-feira, junho 2

PRESIGO


Não sei qual o âmbito de uso desta palavra no território nacional. Imagino que, no Brasil e nas restantes ex-colónias, terá também algum uso. Para mim, no entanto, é palavra bem presente e que consta no meu dicionário mental. Por curiosidade, consulto alguns dicionários e obtenho aproximadamente a mesma definição: o que se come com o pão, carne de porco, conduto. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, acrescenta-lhe: farnel. O Dicionário Houaiss e o Dicionário da Academia apontam-lhe uma origem obscura relevando a condição de regionalismo. O Dicionário Houaiss apresenta a explicação mais completa, dada em três simples linhas: designação genérica do que se come, sem prato, com pão (por exemplo: presunto, azeitonas, queijo). Curiosamente, ambos escondem o verbo presigar, constante dos outros três dicionários. Não é fácil explicar os contextos de uso de palavras como esta, suscetíveis de modificar ligeiramente o seu significado. Nos velhos tempos, isto é, no tempo da sopa, da côdea rapada e da meia sardinha, o presigo era o que se comia além da sopa. Em geral, o que se comia além da sopa não levava grandes condimentos. Toucinho sim, que era guardado em salmoura e se comia de vez em quando. E hoje, com a mudança alimentar, ainda há quem espere pelo presigo? E os jovens conhecerão a palavra?