sábado, abril 30

OS ÓCULOS

Ali em frente está um quadro. Não um quadro entendido como figura de uma realidade, mas um quadro que é realidade: negro, cheio de teias de aranha em tons de branco, e pujante de palavras. À esquerda leio a palavra amor, escrita em maiúscula, porque este sentimento é maiúsculo, dizem, o que é duvidoso em noites de trovoada; no centro, encoberta pelos cabelos dela, a palavra desejo, em caracteres pequeninos, como se o desejo fosse do tamanho de uma avelã; e à direita, empinada no seu pê inicial, a palavra paixão. Ainda não percebi muito bem por que razão estes supinos vocábulos terminam todos em ão, a não ser por reminiscências caninas. Digamos então que o quadro é negro e tem por ali um léxico a significar. Em frente do quadro, outro quadro, uma figura e o seu contexto, ela. Ela e o seu sentido naquela figuração. Analiso-a com uma lupa especial: cabelos castanhos compridos às ondinhas, uma blusa parece que de seda, roxa e desmaiada, calças de ganga à jardineiro e, bem pendurado no pescoço, um colar minúsculo com uma cruz. Ao cimo, bem fixados na testa, os óculos. Nos quadros, reais, escritos ou pintados, há sempre algo que se releva. Neste, por simples acaso ou porque as hastes são de metal brilhante, acenam pressurosos os óculos, como se quisessem dizer ei, estou aqui, também sou gente… Miro bem e vejo: por detrás deles, arrebitam uns olhos castanhos de encantar. E fico indeciso: o que realçar, o fundo ou a forma, a lupa, os olhos ou os óculos? A figura ou a coisa figurada? E, de repente, dou comigo a pensar nestas três palavras, na sua relação significativa, e na pessoa bela que tenho na minha frente. Eu, que tenho olhos, logo óculos, precisarei de óculos para vê-la melhor? Ou, de óculos assim duplicados, precisarei de lupa, logo três óculos, para sentir a beleza indescritível do seu largo sorriso? Concentro-me. Imaginativamente aproximo-me da menina dos seus olhos, pequenina como a estrela polar no profundo firmamento, e confirmo: os seus óculos são um filtro, o quarto filtro da minha longuíssima visão, e o real que procuro é pequenino no largo espectro de toda a figuração. Não sabia, nunca tinha pensado nisto, que às vezes filtramos o real através de lentes multiplicadas. E que o real, aquela menina dos olhos ou aquela menina dos óculos, têm características escondidas ou moldáveis, algumas bem moldáveis pelos olhos do próprio pensamento.

3 comentários:

Elisabete Martins disse...

Que lindo. O professor descreve a menina, cujo nome começa com um pê, tão bem.
Agora o nosso trabalho para esta crónica torna-se mais difícil, depois de ler a sua, vamos tentar estar à altura, coisa completamente impossível.

Ana Paula Sarmento disse...

Tens razão, Bete, é uma bela crónica. Felizmente que o professor já me confirmou que a retratada não sou eu, ou poderia haver confusões, com tanta beleza...;D

Anónimo disse...

Aqui a "resmungona" achou esta crónica pobre, pouco fala de amor! Bem e esse tem sido o tema das nossas aulas... Aquelas aulas em que entramos cansados, depois de um dia exaustivo e de correria, ora corre para o trabalho e enfrenta um fila enorme de trânsito, ora chega atrasado, ora já levaste na cabeça porque chegaste atrasado e o trabalho já nem corre bem e depois vem a hora do almoço, toca a almoçar a correr, almoçar como quem diz comer qualquer coisita, quase que precisamos de sapatilhas com tanta correria! E depois ao final do dia, duas horas de reflexão quase como se de terapia psicolópgica se tratasse, que nos leva a pensar em montes de pessoas que perdemos, e ainda bem, e outras que talvez não devessemos ter deixado fugir, e isso é que é pena!... Mas para a frente é que é o caminho e como diz o Vitor Espadinha "recordar é viver"! No final do dia com o calor da minha menina me aconchego bem juntinho dela na cama, e encho-a de beijos mesmo a dormir é divertida, e imagino as peripécias do dia dela, as piadas astutas que me deixam embasbacada, o cabelo dourado e enroladinho como ela mesma diz, e aproveito o pouco tempo que está ao pé de mim! E como passa depressa, tão crescida que ela está... Mas isso não interessa há momentos que são para ser vividos e lembrados eternamente, estou a falar dos bons claro! Ó professor tem cá um jeitinho para a escrita que até chego a sentir inveja. Gostei da crónica mas pra próxima temos que lançar-lhe um desafio muito maior! Lançar um livro que tal daqueles em que fala de amor, para que no final do semestre possamos ter uma espécie de terapeuta literário, para que ao final do dia possamos lê-lo e sentir a paz e harmonia com que saímos da sua aula.

Dulce