sexta-feira, abril 29

CRÓNICA DA MESA QUADRADA

Eu disse-lhes: qualquer coisa é motivo para escrever um texto interessante, e apontei a mesa. A mesa estava ali, quase quadrada, cinzenta e triste, em contraste com os trejeitos alegres da sala. Tínhamos falado em sinestesias complexas, em aromas subtis, em densidades invisíveis, e tudo relacionado com as palavras, com o fascínio das palavras. E prometi-lhes a crónica. Esta, que estou escrevendo. Porque uma crónica só precisa de um clique, e o clique é a mesa. Podia ser a Josefa, os seus olhos de sereia do mar, ou o seu dedo apontado ao infinito do meu nariz. Mas não é. Também podia ser a Marta, a ufana, sempre à tona das ironias com que matraca os colegas do lado. Ou a tensão inexplicável do Luís, carica central de malmequer aos tombos, de olhos azedos em direcção ao além das janelas. Mas não. O clique é a mesa. Quadrada, cinzenta, mas cheia do que eu lhe quiser pôr. E apetece-me imaginá-la (sim, porque eu posso imaginá-la para além do real que é) cheia de odores cruzados com cores indecifráveis, ou sob tilintar de campainhas que lá ponho em dias frescos de Páscoa. E pressinto o repasto: alunos sôfregos de filosofias correndo para a mesa em busca da amêndoa bem cheirosa, do pastel de bacalhau quentinho às dez horas da noite e do verde fresco em taças de maduro. Também posso imaginá-la, sobranceira, ao lado da estante guarnecida: ao meio um portátil a abarrotar de megas, um labirinto de fios parecidos com os de baba e um livro aberto na página vinte, exactamente a página que fala da traição da Sandra. Tinha de ser: a mesa, a traição e o amor. Porque o amor é cor, é doce, é aroma omnipresente, mesmo quando se odeia ou despreza. A propósito: quem disse que o ódio é o contrário do amor? Eu, sentado no bordo da mesa quadrada, digo que não, e a Rita confirma: o autor xis disse que é o desprezo, e eu vou na onda calma com ela. Realmente, o desprezo é coisa de se lhe tirar o chapéu. E tu, já foste desprezada? Eu? E alongou aquele eu até à saída da sala. Eu não! O primeiro que me desprezasse levava um biqueiro nas santas cruzes que até via as estrelinhas na sopa… Sorri, sorrimos todos daquela imagem tão sugestiva, e até o Valentim deu uma sonora gargalhada. Portanto, a mesa. Olho-a com olhos piscos, volto-me para a sala, vejo aqueles semblantes doces, inquisitivos como os espinhos dos cactos, e prometo: a crónica está escrita. Não sei se já está, acho que sim, mas se não a terminar agora penduro-a na maçaneta do meu quarto. E acabo-a logo. Pelo sim, pelo não, levo a mesa comigo, não vá esquecer-me de algum adjectivo que se lhe aplique. Porque o real e as suas qualidades andam sempre de mãos dadas, e a mesa é linda como o cinzento do céu, só lhe falta a flor ao centro, aquela Margarida loira que me sorri lá do fundo em tons de gata malhada.

2 comentários:

Elisabete Martins disse...

As saudades que eu tenho das aulas de português e do bem que faziam a alma de toda a gente, dessa gente que está descrita no texto. Mesmo que essa gente não corresponda a personagens reais, toda a turma se identificou nelas.
Obrigada professor pelas sextas-feiras bem passadas na aula que faziam com que o final da semana, bom por natureza, se tornasse ainda melhor :)

Alguém sem Assinatura disse...

As saudades que tenho das aulas de português. Eram inspiração! E é sempre bom ler o texto dedicado à nossa turma. Que orgulho!