OS ÓCULOS
Ali em frente está um quadro. Não um quadro entendido como figura de uma realidade, mas um quadro que é realidade: negro, cheio de teias de aranha em tons de branco, e pujante de palavras. À esquerda leio a palavra amor, escrita em maiúscula, porque este sentimento é maiúsculo, dizem, o que é duvidoso em noites de trovoada; no centro, encoberta pelos cabelos dela, a palavra desejo, em caracteres pequeninos, como se o desejo fosse do tamanho de uma avelã; e à direita, empinada no seu pê inicial, a palavra paixão. Ainda não percebi muito bem por que razão estes supinos vocábulos terminam todos em ão, a não ser por reminiscências caninas. Digamos então que o quadro é negro e tem por ali um léxico a significar. Em frente do quadro, outro quadro, uma figura e o seu contexto, ela. Ela e o seu sentido naquela figuração. Analiso-a com uma lupa especial: cabelos castanhos compridos às ondinhas, uma blusa parece que de seda, roxa e desmaiada, calças de ganga à jardineiro e, bem pendurado no pescoço, um colar minúsculo com uma cruz. Ao cimo, bem fixados na testa, os óculos. Nos quadros, reais, escritos ou pintados, há sempre algo que se releva. Neste, por simples acaso ou porque as hastes são de metal brilhante, acenam pressurosos os óculos, como se quisessem dizer ei, estou aqui, também sou gente… Miro bem e vejo: por detrás deles, arrebitam uns olhos castanhos de encantar. E fico indeciso: o que realçar, o fundo ou a forma, a lupa, os olhos ou os óculos? A figura ou a coisa figurada? E, de repente, dou comigo a pensar nestas três palavras, na sua relação significativa, e na pessoa bela que tenho na minha frente. Eu, que tenho olhos, logo óculos, precisarei de óculos para vê-la melhor? Ou, de óculos assim duplicados, precisarei de lupa, logo três óculos, para sentir a beleza indescritível do seu largo sorriso? Concentro-me. Imaginativamente aproximo-me da menina dos seus olhos, pequenina como a estrela polar no profundo firmamento, e confirmo: os seus óculos são um filtro, o quarto filtro da minha longuíssima visão, e o real que procuro é pequenino no largo espectro de toda a figuração. Não sabia, nunca tinha pensado nisto, que às vezes filtramos o real através de lentes multiplicadas. E que o real, aquela menina dos olhos ou aquela menina dos óculos, têm características escondidas ou moldáveis, algumas bem moldáveis pelos olhos do próprio pensamento.