quarta-feira, março 16

VÓS, VOCÊS E O CHEIRO A BAFIO

Trabalhar com estrangeiros, conhecer as suas línguas, permite ao professor de Português como Língua Estrangeira aperceber-se de fenómenos que, sem este contexto, dificilmente fariam parte das suas cogitações. O estudo comparativo das línguas permite descobrir o que as línguas têm de lógico ou ilógico, e, no limite, conduz-nos a viagens na longa diacronia.

No que respeita aos pronomes pessoais com função sintática de sujeito, o português europeu atualiza o seguinte paradigma ( que compara com o paradigma espanhol, francês e inglês):

eu, yo, je, I
tu, tú, tu, you
ele/ela/você, ello/ella/usted, il/elle, he/she/it
nós, nosotros/as, nous, we
vós, vosotros/as, vous, you
eles/elas/vocês, ellos/ellas/ustedes, ils/elles, they

Como se pode ver, o inglês possui o neutro it que não existe nas outras três línguas e reduz a 3ª pessoa do plural à forma they. De resto, é equivalente às outras línguas, com exceção de você/usted. Os paradigmas são logicamente “iguais”: todas têm a 2ª pessoa do singular; todas têm a 2ª pessoa do plural. O plural de tu é vós; o plural de é vosotros/as; o plural de tu é vous; o plural de you é you. Ganham os ingleses, que não complicam as coisas. E os franceses também.

Em determinadas regiões de Espanha ( cujas línguas regionais se diferenciam por vezes do castelhano), há não poucas vezes confusões do tipo de ¿Ustedes vais al cine? Tais confusões acontecem e não perturbam a compreensão das mensagens.

Em português europeu, discute-se acaloradamente o uso de vós e de vocês. Como, de permeio, temos fórmulas como o senhor, o senhor doutor, o senhor doutor professor e outras quejandas enormidades relativas ao tratamento interpessoal, já vemos a confusão que por aí grassa, e a inquietude dos estudantes estrangeiros no momento da aprendizagem. Se o azarado estudante escolhe Lisboa, juram-lhe a pés juntos que o pronome vós ou não existe ou cheira a bafio. Dão-lhe, até, gramáticas pretensamente pedagógicas sem o dito cujo, como se o vós do paradigma pessoal tivesse peçonha ou cheirasse a chulé. Se escolhe o norte, ouve nos cantos da invicta ou no frondoso Bom-Jesus um Estai quietos, meninos!, ou Quereis um geladinho?

Não sei porquê, mas admiro o utente do vós, o conhecedor do fizerdes, o dominador da gramática. Você cheira-me a ligeira deferência, a solução simples para a dificuldade da gramática. Por isso digo quase sempre vós: eu trato-vos por tu, não é verdade, meninos? Quanto ao vocês, talvez vos diga isso quando tiverdes mais idade. Pensando no bafio, prefiro-o ao ar "puro" do bué.

Da Metakritica

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