A PONTUAÇÃO
Há dias, um aluno mais esperto afirmou-o sem receios: o mito da importância da pontuação é quebrado quando lemos autores como Almeida Faria ou José Saramago, nos seus textos sinuosamente ambíguos. Pontuar, dizia-me ele, é um exercício insípido e desnecessário. Eu sorri, claro. Na altura apenas lhe perguntei se achava desnecessários os sinais de trânsito das cidades. Expliquei-lhe que podíamos conduzir perfeitamente sem qualquer sinalização, mas também lhe sugeri o caos. A verdade é que a vírgula ou o pontinho, as reticências ou o sinal de interrogação são signos convencionais, como convencional é o triângulo vermelho na berma da estrada. Quando o vemos, geralmente paramos. Se não paramos, o problema é nosso.
Todos sabemos que entre a fala e a escrita há um mundo significante de permeio. Quando falamos ( e até quando não falamos!) transmitimos mensagens, sentidos, e fazêmo-lo com todos os recursos de que dispomos, desde os gestos aos olhares malandros, passando pelas múltiplas entoações, pelos ritmos, tudo acompanhado por risos ou por lágrimas, com pausas ou sem pausas. Quando falamos dizemos tanto sem falar, usamos o anacoluto, o salto ou a retoma do pensamento, e fazêmo-lo sem nada problematizar. Até os analfabetos falam, e alguns são mesmo doutores a falar, porque nasceram com a língua e não precisam de conhecer convenções para falar bem. Em geral, todos os portugueses falam bem a sua língua, isto é, todos se fazem compreender de acordo com as suas necessidades. É evidente que alguns portugueses precisam de falar muito bem a nossa língua, mas esses têm de reflectir sobre ela, mesmo sobre os aspectos fundamentais da oralidade, sobre o valor da retórica.
O problema surge quando queremos escrever. Como representar na escrita toda a complexidade da fala, as emoções, os contextos, as entoações, as pausas, essas coisas todas que potenciam a intercomunicação? É evidente que nenhuma convenção relativa a sinais de pontuação dará nunca totalmente conta desta complexidade. Mas pode, evidentemente, ajudar à condução das palavras nas frases ou nos textos. O grande dilema consiste em distinguir o que é característico do estilo de um autor daquilo que é a logicidade da própria língua. Quer dizer, a pontuação pode desempenhar ora uma função lógica, ora uma função estilística, e, por vezes, estas duas funções entram em conflito. Se um poeta quer transmitir toda a emoção que lhe assalta o simbólico coração e repete, com acrescentamento de reticências, o célebre sinal de exclamação, na frase Oh meu amor, és a rosa mais cheirosa do meu jardim!!!..., fá-lo porque quer, e ninguém tem nada com isso. Mas o factor lógico é realmente muito importante, e não faria sentido separar por uma vírgula o verbo e o complemento directo na frase A Maria vendeu os seus brincos à Ritinha. Com efeito, se pensarmos um pouco, há verbos cujo quadro de subcategorização, ou de selecção, se preenche obrigatoriamente, isto é, ninguém imagina a Maria a vender, se não vender alguma coisa, a alguém, por X dinheiro. Se quem vende, vende alguma coisa, por que razão hei-de separar o verbo do objecto directo por uma vírgula? Quer dizer, o nosso conhecimento da estrutura léxica, da estrutura sintáctica e, até, dos vários enquadramentos semânticos é visivelmente fundamental para pontuar logicamente bem.
Por isso sorri ao meu aluno e lhe disse que, mais do que conhecer de cor o valor da vírgula ou do pontinho, devia aprofundar o estudo do léxico, da morfologia e da sintaxe do português. E ler os bons autores, os que põem vírgula e os que se riem dela. Ler, acreditem, é a grande solução.
Da minha Metakritica, Junho 2006