Há dias assim, melancólicos, tristes, com chuva e vento no coração. Salva-nos Emma Shapplin, a sua voz espantosa baloiçando em nós com os silvos lá fora. Cuor senza Sangue, Ira di Dio, La Notte Etterna, tudo canções maravilhosas que nos trazem chuva aos olhos. Oiço-a e deixo-me embalar. Quase adormeço.
terça-feira, dezembro 29
Esta palavrinha amor...
Gosto da palavra amor. Não sei porquê, quer dizer, sei bem porquê, mas é uma daquelas palavras que não engana, vê-se, aspira-se, inspira-se, expira-se, e já está. E é anagramática, com ela até podemos ir a Roma… Vocês já fizerem contas à muralha de expressões em que cabe esta bendita palavrinha? Eu bem me lembro do amor cortês, do platónico e, pasme-se, até do socrático. Uns por amor ao próximo; outros, quiçá em resultado de disfunções oculares, por amor à primeira vista. É por essas e por outras, por estrabismos à Picasso, que uma velha desdentada é linda como os amores. Até pode sê-lo, se for tudo feito e refeito por amor de Deus. Porque a beleza, como diria o Confúcio cá do burgo, é a expressão máxima do bigode nas ventas. Ali ao lado vive uma bela com um feioso do caraças, eu bem me pergunto porquê, mas é a estética do pilim: por amor ao dinheiro, ela vai até Pequim… Nas flores e nas plantas é que o amor se esquenta: ele é o amor-agarradinho, o amor-das-onze-horas e até o amor-de-moça, plantinha herbácea com umas florzitas roxas, muito cheirosinha, enfim… E já nem falo dos amores-dos-homens nem dos amores-do-campo, esses malandrecos, culpadíssimos de alergias e afins em dias de fluidos fenos. E finalmente, porque tenho um amor-próprio assim meio amor-perfeito-bravo, fico-me pelo amor fati, essa coisa estóica de que se pisgava Nietzsche: curvo-me perante a vida, assumo o meu destino e sigo a luz que me conduz à gruta. Lá eu sei que tenho o amor doce e puro de um Menino.
sexta-feira, dezembro 25
POEMA DE NATAL
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
in Miguel Torga - Poesia Completa, Lisboa, Pulicações Dom Quixote, 2000
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
in Miguel Torga - Poesia Completa, Lisboa, Pulicações Dom Quixote, 2000
JARRINHA
Há quem não goste, mas eu adoro dicionários. Alguns são lindos por fora, têm letras douradas e cheiros a papel antigo, mas é lá dentro que o fruto tem sabor. Lá dentro, nos verbetes, mais ou menos extensos, mas carregadinhos de significados. Há bocado, sem querer, encontrei a jarrinha, pequena jarra que tenho também ali no canto, com assinatura da Rosa Ramalho e tudo, oferta de lautíssimo aniversário. Nas folhas amareladas, no entanto, a beleza suplanta a da realidade. Enterneço-me, por exemplo, com a jarrinha-batatinha, planta volúvel, ou com a jarrinha-bico-de-passarinho, trepadeira nativa do Brasil. Tão bonito, não é? Quem inventou estes nomes só podia ser poeta, pois eles abrem-se em metáfora como a flor se abre em pétalas. Viro a página e eis uma jarrinha-de-franjas de mão dada com uma jarrinha-dos-campos. Mas da que eu gosto mais é da jarrinha-de-lábio-pintalgado. Reminiscências ou soluços encobertos? Alguém disse um dia que as palavras não são bonitas nem feias, são o que são e significam o que significam. Ao olhar para a jarrinha, porém, mergulho no desacordo. Que belas são estas palavras!
quarta-feira, dezembro 2
TROUXE-MOUXE
Afinei o ouvido. Ela disse trussa? Desconheço a palavra. Ou seria o francesismo trousse? Ora repete. E ela: trusse. Com alunos estrangeiros, problemas de identificação fonética são o abc da coisa, é preciso muita atenção. Espera: vamos aos significados. Diz-me uma coisa, estás a falar de uma peça de vestuário, algo como camisa, ou calças…? Que não. Porque trousse, em francês, significa uma espécie de calça, já muito antiga (já não há pagens que as vistam) e, talvez por isso, se a palavra trussa estiver dicionarizada, o seu significado rondará por aí. Mas não, nem trussa, nem trusse com sotaque, nem trusse (que raio significaria trusse?). De repente, uma iluminação: ahhhhh... trouxe… Sim, sim, disse ela muito rapidamente. Trouxe, trouxe, e carregava no xis. Pois, lá pensei que era o Pretérito Perfeito do trazer, e lá gastámos uns minutos na dinâmica do trazer-levar. Mas os movimentos eram errados. Ao fim de umas bem suadas reflexões linguísticas, concluímos todos, eu e os outros alunos, que era trouxe, sim senhor, mas na expressão trouxe-mouxe. Em português, podendo ser nome susceptível de plural, tal expressão é, em geral, de valência adverbial, e recebe prótese preposicional: a trouxe-mouxe. Na nossa língua, que eu saiba, não há trouxe nem há mouxe como designações de coisas. Eu sabia que a locução significava algo como “de modo desordenado”, mas não conhecia a sua origem. Agora já sei que tem origem em lenhadores (parece que espanhóis: a troche y moche) despreocupados com as questões ambientais, que cortavam as árvores à machadada, à esquerda e à direita, desordenadamente, sem pensarem um segundo na perpetuação da espécie. Mochar para mutilar. Trochar, de trozar, para fazer em destroços. E pronto, lá fui obrigado a aprender para voltar a ensinar. Isto de aprender tem que se lhe diga...
Afinei o ouvido. Ela disse trussa? Desconheço a palavra. Ou seria o francesismo trousse? Ora repete. E ela: trusse. Com alunos estrangeiros, problemas de identificação fonética são o abc da coisa, é preciso muita atenção. Espera: vamos aos significados. Diz-me uma coisa, estás a falar de uma peça de vestuário, algo como camisa, ou calças…? Que não. Porque trousse, em francês, significa uma espécie de calça, já muito antiga (já não há pagens que as vistam) e, talvez por isso, se a palavra trussa estiver dicionarizada, o seu significado rondará por aí. Mas não, nem trussa, nem trusse com sotaque, nem trusse (que raio significaria trusse?). De repente, uma iluminação: ahhhhh... trouxe… Sim, sim, disse ela muito rapidamente. Trouxe, trouxe, e carregava no xis. Pois, lá pensei que era o Pretérito Perfeito do trazer, e lá gastámos uns minutos na dinâmica do trazer-levar. Mas os movimentos eram errados. Ao fim de umas bem suadas reflexões linguísticas, concluímos todos, eu e os outros alunos, que era trouxe, sim senhor, mas na expressão trouxe-mouxe. Em português, podendo ser nome susceptível de plural, tal expressão é, em geral, de valência adverbial, e recebe prótese preposicional: a trouxe-mouxe. Na nossa língua, que eu saiba, não há trouxe nem há mouxe como designações de coisas. Eu sabia que a locução significava algo como “de modo desordenado”, mas não conhecia a sua origem. Agora já sei que tem origem em lenhadores (parece que espanhóis: a troche y moche) despreocupados com as questões ambientais, que cortavam as árvores à machadada, à esquerda e à direita, desordenadamente, sem pensarem um segundo na perpetuação da espécie. Mochar para mutilar. Trochar, de trozar, para fazer em destroços. E pronto, lá fui obrigado a aprender para voltar a ensinar. Isto de aprender tem que se lhe diga...
terça-feira, dezembro 1
ABDELLATIF LAÂBI
Um poema:
Mon double
une vieille connaissance
que je fréquente avec modération
C’est un sans-gêne
qui joue de ma timidité
et sait mettre à profit
mes distractions
Il est l’ombre
qui me suit ou me précède
en singeant ma démarche
Il s’immisce jusque dans mes rêves
et parle couramment
la langue de mes démons
Malgré notre grande intimité
il me reste étranger
Je ne le hais ni ne l’aime
car après tout
il est mon double
la preuve par défaut
de mon existence
Um poema:
Mon double
une vieille connaissance
que je fréquente avec modération
C’est un sans-gêne
qui joue de ma timidité
et sait mettre à profit
mes distractions
Il est l’ombre
qui me suit ou me précède
en singeant ma démarche
Il s’immisce jusque dans mes rêves
et parle couramment
la langue de mes démons
Malgré notre grande intimité
il me reste étranger
Je ne le hais ni ne l’aime
car après tout
il est mon double
la preuve par défaut
de mon existence
Subscrever:
Mensagens (Atom)