segunda-feira, setembro 24

CRÓNICA DE UM QUADRO NA VALETA

A crónica, o quadro e a valeta. Não é suposto escrevinhar-se mais ou menos literariamente sobre esta dupla assim tão antagónica. Quer dizer, poderia ser. Conhecemos pinturas famosas de sanitas, porque não de valetas a abarrotar de lixo? Mas não, não é de lixo que se trata, é mesmo de um quadro na valeta.
Um quadro é um quadro, como diria Wittgenstein, uma figuração da realidade. Aquele quadro tinha uma moldura e, dentro da moldura, um menino derretido em lágrimas. Não sei bem se chorava por estar mesmo na valeta, ou se a valeta tinha cascas de cebola, daquelas que fazem chorar até um cavalo. O que me chamou a atenção não foi o quadro, nem a valeta. Foi antes o facto de, a menos de 20 metros, três contentores se espreguiçarem, sobranceiros, à espera das nossas santas sobras.
Não sei se o menino choraria melhor dentro do contentor, nem sei se por lá sobrariam umas tiras de cebola da Índia. Mas raios, isto de estilhaçar tão triste figurinha pelas ruas da amargura não se faz. Um quadro deve estar na parede, bem visível, bem pendurado em prego forte e altaneiro. Na valeta não. Porque na valeta estamos todos, todos os reais, não precisamos de figurações. Essas são para contemplar nos momentos em que estamos na valeta.

1 comentário:

Margarida disse...

Um quadro é - como referiu ao citar Wittgenstein - uma figuração da realidade. Como tal,o acto de se desfazer do quadro pode ter sido,ele próprio,uma forma que o dono,inadvertidamente,encontrou para lhe dar significação. O quadro,recipiente de símbolos e significados que desconhecemos,porque concernem exclusivamente o seu detentor,pode,por essa mesma relação intimista na qual figura,constituir um obstáculo ou,pelo menos,o seu estatuto de contentor de significados pode agora contituir perigo,de algum modo,para o seu dono. Porque o que revela demasiado torna-nos vulneráveis. A vulnerabilidade assusta-nos. E a melhor forma de nos despojarmos do que nos assusta é livrarmo-nos dos objectos que lhes dão forma.