O CORVO
Noé abriu a janela e soltou o corvo. E assim soube que as
águas secaram sobre a terra. Depois, soltou a pomba. Desta, não sabemos mais
nada, a não ser que todos os dias sobrevoa o varandim e poisa na eira. Do
corvo, vicente na sua luta contra o poder arbitrário de Deus, sabemos, porque
Torga o colocou naquele pedaço de terra onde lutou, altivo, contra a fúria das
águas. E foi daqui, talvez, que voou até Sagres, onde demarcou território e
constituiu família. Na sua ânsia de amplidão e de liberdade construiu o ninho
exatamente na reentrância última das escarpas do cabo. E pôde ver, então, as
relíquias do santo. Viu-as, ele e a sua companheira de jornada. E sentiram a
santidade. Quando a caravela se aproximou, voaram em círculos, uma, duas, tantas
vezes até que alguém se aproximou do lugar. A prova da sua relação com Deus
apresentava-se clara como o branco do luar. O corvo, porém, sentia ainda o som
tonitruante das palavras do Senhor. Deu as asas à sua companheira e,
serenamente, acompanharam o santo até à terra lendária de Ulisses. Irmanou-se,
santificou-se e chamou-se Vicente, o santo, o que vence. Voltou à sua prole,
toda de asa negra, e viveu feliz. Soube mais tarde, por outros irmãos
viajantes, histórias de poemas e filmes, simbologias esparsas, onde fizeram de
si mau, e aos da sua espécie. Perguntou-se porquê, pensou na barca e em Noé, na
fúria inexplicável de Deus, no pedaço de terra quase engolido pelas águas, no
seu promontório feliz, e prometeu dizer nunca mais para satisfazer o poeta e os
artistas: E jurou, ainda, dizer não à prepotência de Deus: eleito, nunca mais!